- O VLT Rio não é moderno. Modernização técnica e demão de design sofisticado não necessariamente tornam moderno um equipamento. O moderno deve estar em pleno diálogo com as marcas, os anseios e, no caso de um meio de transporte, as necessidades do atual. Do contrário, a forma anuncia apenas um conteúdo vazio. É o que acontece com as linhas projetadas para o VLT Rio: fazem parte de uma modernização da cidade ditada pelo capital, mas não são propriamente modernas, posto que não correspondem às atuais necessidades da cidade. Moderno mesmo continua sendo o bom e velho bondinho de Santa Teresa;
- O VLT Rio não é o bonde. O modal pode ser o mesmo, mas há uma distância fundamental entre um e outro. O bonde foi o principal meio de transporte do carioca até pelo menos a década de 1940. É bem verdade que ele serviu aos especuladores e enriqueceu ainda mais os cofres da Light. Mas, por outro lado, atravessava praticamente todos os bairros e classes da cidade. Para o "Ciroula", bonde gourmet que levava os bacanas para o Teatro Municipal, havia o "Taioba", bonde que pela metade do preço geral transportava os mais humildes trabalhadores com todas as suas bugigangas. Já o VLT Rio não foi projetado com essa finalidade. Na verdade, ele faz parte de um vitorioso projeto de precarização do transporte, o mesmo que retirou os bondes das ruas sob o argumento de que ele era lento demais. A propósito, o VLT Rio circula, em média, a 15 km/h.
- O VLT Rio não foi batizado. Tem gente dizendo que o VLT Rio foi vandalizado recentemente pelos professores grevistas, que colaram centenas de adesivos em sua lataria. Se o VLT se ofender com isso, francamente, não o chamem de bonde moderno em hipótese alguma! O bonde foi absolutamente depredado em várias revoltas na cidade, entre as quais destacam-se a do Vintém (1879), a primeira a ir contra os sempre abusivos preços do transporte público, e a da Vacina (1904), que enfrentou sem vacilar a autoritária higienização da cidade de Passos. E assim entrou para a nossa história. Para ser o "bonde moderno", o VLT Rio, do Paes, também precisará encarar de frente os seus batismos, que certamente virão;
- O VLT Rio não dá samba. Falta ao VLT Rio ser apropriado pelo carioca em seu cotidiano. Dito de outra maneira, falta ser mais que um simples meio de transporte e ascender ao imaginário da cidade. E, nesse quesito, o bonde é incomparável. Pensemos em expressões como "pegar o bonde andando" e mesmo no sem número de bondes que dão nome aos conjuntos de funk da cidade. Pensemos também que o bonde serviu de mote principal para os escritores cariocas, das crônicas de passeio do século XIX ao lirismo pessimista de Marques Rebelo dos anos 1930/40. Ou mesmo nos sambas de Noel Rosa e Wilson Baptista, que eternizou o Ipanema, "o bonde que nunca viaja vazio", o 56, "o bonde que sempre trouxe meu amor" e o São Januário, o bonde que "leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar". Trocando em miúdos, o VLT não dá crônica. E muito menos samba;
sábado, 25 de junho de 2016
Quatro motivos para não chamar o VLT Rio de "bonde moderno"
quarta-feira, 20 de abril de 2016
Bela, recatada e do lar ou a imagem feminina do Rio de Janeiro
Foi Ruy Castro quem disse, provavelmente citando outro autor do qual já não me lembro, que no mundo há apenas duas categorias de cidade: as masculinas e as femininas. No primeiro caso, por sua sisudez, seriedade e inclinação para o trabalho, estariam cidades como São Paulo e Nova Iorque, por exemplo. Já no segundo, por seu charme, leveza e sedução, estariam Paris e, é claro, o Rio de Janeiro. A primeira conclusão é simples: os grandes autores também têm lá os seus dias ruins.
É verdade que essa imagem do feminino ligada ao Rio de Janeiro não foi desposada – se me permitem a brincadeira – por Ruy. Muita gente boa embarcou nessa antes dele. Vinícius de Moraes que o diga. A Garota de Ipanema é, na verdade, menos uma musa inspiradora personificada pela Helô Pinheiro do que uma alegoria da cidade, essa cidade-mulher passiva, feita para o deleite masculino.
Cidade-mulher, aliás, é o titulo de um curioso livro de crônicas do talentoso e esquecido cronista Álvaro Moreyra, publicado nos anos 1920. Aos leitores, Moreyra explicava sua escolha logo na primeira crônica:
“- Cidade-Mulher? Não Entendi.
- Por isso mesmo”.
Quer-se dizer: o que está em jogo aqui é aquela ideia, do mistério, do ser intransponível, da dissmulação, da Capitu, enfim, com seus olhos de ressaca.
Aqui entra a segunda conclusão, não tão óbvia assim: a personagem machadiana é mais que uma imagem idílica e passiva da cidade. Machado, em sua malandragem da dialética, coloca o discurso do narrador à prova. Bentinho é um advogado que atua em causa própria, afinal. E, no Brasil de hoje, e no caso do Rio de Janeiro em especial, é bom mesmo desconfiar dessas duas figuras: narrador e advogado atuam quase sempre em causa própria.
Talvez então a chave mais rica para se pensar a imagem feminina do Rio esteja em outras personagens, aquelas que, na ficção ou na vida real, desconcertam os discursos prontos e a narrativas totalizantes.
Essa potência está na sua capacidade de diálogo com e na rua, onde Vidinha, das Memórias de um sargento de milícias, cantava seus lundus e fazia sua patuscada a despeito da perseguição do inquisidor major Vidigal.
Vidinha é patrona de Oscarina, de Marques Rebelo, mas também das escravas que, explorando as brechas do cotidiano, circulavam pela cidade muito antes de suas senhoras, que só sairão de casa no início do século XX. E mesmo dessas: quem não lembra do pavor provocado pelas melindrosas e suas saias e cabelos curtos, seus cigarros e suas sessões de cinema de-sa-com-pa-nha-das?!
Vidinha se multiplicou: nas polacas da região portuária, em Madame Satã ou nas putas expulsas para a Vila Mimosa que, não obstante, fazem valer sua memória no edifício da prefeitura: o "piranhão".
Nas Tias da Pequena África, que fizeram o Rio ser o que é: negro, plural, prenhe de saberes e sabores. Em Chiquinha Gonzaga e Nair de Tefé, primeira dama da primeira república, mas também primeira caricaturista e caricaturista de primeira, que trouxe o corta-jaca (!) pruma cerimônia oficial no Palácio do Catete. Em Carmem Miranda e Aracy de Almeida, a rainha do Encantado. Vidinha está em Elza Soares!
A terceira conclusão, portanto, é: bela, recatada e do lar, o Rio nunca foi ou será!
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
Marcha Crônica de um Carnaval Carioca Qualquer
-Vou beijar-te agora, não me leve a mal. Hoje é Carnaval!
- O galo tem saudade da galinha carijó...
- Nós vamos brincar separados?
- É o teu castigo! Brigou comigo sem ter porquê.
- Bandeira branca, amor... Não
posso mais...
- Caramba, carambola... Sou do samba, não me amola!
- Mamãe... eu quero!
- Sen-sa-ci-o-nal...
- Não vai dar?! Não vai dar não?! Você vai ver uma grande
confusão!
- Pierrô cacete! Vai tomar sorvete com o Arlequim!
- Foi Deus quem te fez formosa... porém esse mundo te tornou
presunçosa. Presunçosa!
- Tem nego bebo aí, tem nego bebo aí...
- Eu bebo sem compromisso. Com meu dinheiro. Ninguém tem
nada com isso!
- Olha o bafo da onça que...
- Se você fosse sincera...
- A pipa do vovô não sobe mais...
- Taí! Eu fiz tudo pra você gostar de mim...
- Ô abre alas, que eu quero passar...Ô abre alas, que eu
quero passar...
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental
As sextas que me desculpem, mas
quinta-feira é fundamental. Principio, como o faz Alberto Mussa em seu último
romance, com uma frase que, a rigor, deveria ser a conclusão desta crônica. Mas
não faz mal. O sujeito das quintas, que não se deve confundir com um sujeito de
quinta, tem dessas coisas. Enquanto todo mundo vive a expectativa do dia
seguinte, ele não sabe, não pode e nem tampouco quer esperar o derradeiro parágrafo.
Logo eu, que nasci num sábado de
carnaval, fui adorar a quinta-feira. Ando desconfiado de que toda essa
inclinação possa ter a ver com o orixá que me guia, o que me foi revelado numa
curimba há alguns anos lá pelas bandas de Campo Grande.
Sabem como é, né: vida de ateu não praticante não é moleza, não.
Não que eu desconsidere os demais
dias da semana. Não é isso. Mas eu sempre achei que a quinta-feira,
especialmente a quinta, era o meu dia. Ou pelo menos desde os tempos de
faculdade, nem tão longínquos assim. Podia até tomar umas num dia ou outro,
escolhidos aleatoriamente conforme o calor, a vontade ou as duas coisas juntas.
Não vou negar. Mas quinta-feira era diferente. Era dia do meu ritual: Bar da
Frente, Cintra e biscoito Torcida, que eu não fujo das derrotas do passado, não
senhores! Copo era - e continua sendo - americano, por favor! Os amigos
chegavam depois, bem depois, mas chegavam. Como que por
telepatia.
Mas
vamos às razões, afinal de contas todo mundo tem as suas. Nas quintas, há um
quê de compostura no ar. Não diante da vida, mas da morte. Há mais dignidade,
portanto, numa quinta-feira. Reparem só os bares, onde nas quintas-feiras os
seres flertam abertamente com o acaso, desafiam-no na purrinha e, ainda por
cima, dão uma bela de uma borrada na assepsia produtiva da semana, que fica em
aberto, maculada. Os da quinta, em resumo, não suportam redenções enlatadas e
debocham dos que assim procedem. Por essas e outras, e sobretudo nos tempos que
correm, há que se ter muito respeito pelo sujeito que chega de ressaca no
trabalho numa sexta-feira. Vejam: matar o batente não adiantaria de nada, ainda
que o corpo suplique. É preciso exibir com orgulho a ressaca para o povo das
sextas.
Já os bares do dia seguinte se enchem de gente excessivamente frívola e monótona. Esses mesmos, que entornam o caldo na sexta, e esperam ansiosamente por isso, para poderem recolher - enquanto recolhem-se - calmamente toda a sujeira no sábado e preservar, assim, a ordem das coisas. Tudo está no seu lugar, graças a deus!, ainda que a cabeça esteja zureta.
Não, não. Obrigado, mas não. As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Anotem aí: estejam todos convidados pro meu dia. Costumo celebrá-lo aqui mesmo, no BF, microcosmo do centro do Rio, meu canto mais recente e pra onde voltei depois de uns bordejos na Zona Oeste. Mas a quinta-feira continua a mesma. E minha. É só chegar.
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
Isabel que não foi princesa
Cinquenta anos depois que Isabel, a
princesa, assinou a Lei Áurea, nascia, na cidade de Niterói, Isabel
Souza Lima. É, na verdade, o que consta em seu registro de nascimento. Porque
essa Isabel de que trato aqui costumava comemorar seu aniversário em outra data,
dizendo a todos ter nascido a 28 de novembro, mas de que ano ninguém sabe ao
certo. Muito menos ela.
Isabel
fazia parte da extensa prole do casal Malvino Alves de Souza e Adelia Costa Souza.
Ele pedreiro, ela lavadeira. Todos, pais, filhos e irmãos, negros. Como a
imensa maioria das meninas pobres e negras de seu tempo, Isabel teve uma
infância dura. Ainda criança, precisou ajudar sua mãe com a entrega das roupas.
E foi assim que acabou passando à guarda de outra família, que a ela se
afeiçoou e tomou para si a responsabilidade de criá-la.
Sua
educação foi primária e, na adolescência, foi trabalhar na fábrica de fósforos
Fiat Lux, no bairro operário do Vila Lage, em São Gonçalo. Mas seu conhecimento
vinha mesmo era do tete-a-tete com a vida, que a ensinou em algum momento,
provavelmente muito cedo, que para sobreviver era preciso imaginar-se num
carnaval, com toda a sua euforia melancólica de alegorias, máscaras, confetes,
serpentina e lança-perfume.
E
Isabel brincou. E nessa brincadeira conheceu Betinho, negro garboso que na
verdade se chamava Beethoven Silva Lima, num baile da Sociedade Carnavalesca Mimoso Manacá. Casaram-se em 1959, quando ela contava,
portanto, com 18 ou 19 anos de idade. Logo vieram os filhos, ou melhor, as
filhas. Duas. Ligia e Leila.
Isabel
foi forte, mas não foi rude. Serviu à família e segurou as pontas quando
Betinho, metido a malandro, aprontava das suas. E não foram poucas. As filhas,
criou-as como pôde e a partir de sua própria experiência. Escola, uniforme,
cabelo alisado na marra. Por força das circunstâncias, acabou por criar
também os três netos, Rafael, Larissa e Gabriel. Todos devidamente rezados com
o cú virado pra lua e levados com jujubas numa mão e um chinelo ameaçador na outra, só
pra garantir.
Minha
avó morreu quando eu tinha 14 anos. Nasceu livre mas não pôde se libertar de
todo. E talvez soubesse disso. Mas que brincou, brincou. Gostava de dançar.
Arrumava-se toda. Tomava lá a sua cervejinha e fumava escondida no quintal. E
ria. E gargalhava. Não se sabe se foi feliz. É que, no carnaval da vida,
borram-se os contornos que delimitam o íntimo e o superficial. E vó Isabel, que
não foi princesa, adorava carnaval.
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Carioquice
Há bastante tempo recai sobre o Rio um quebranto que
nem mesmo as incontáveis entidades que por aqui batem ponto têm conseguido
desfazer. Sua origem - como é da natureza dos quebrantos - é mítica e, como não
manjo nada de mitologia, deixo-a para os iniciados de plantão. Só sei que, por
algum vacilo junto aos deuses - sempre o vacilo! - o carioca parece
irremediavelmente condenado a ter um problema medonho com sua própria
identidade.
Trocando em miúdos é o seguinte: como a gente foi
capital durante muito tempo, não temos nenhuma tradição de nos pensar regionalmente.
Quer-se dizer: ou bem o carioca acaba girando em torno de si mesmo ou inventa - e
acredita na própria invenção - que é o espelho do país. Na verdade, as duas
coisas não apenas andam juntas, como se entrelaçam e dão origem a chamada carioquice,
que voltou à moda por conta dos 450. Recentemente surgiram até
especialistas no assunto - vejam só vocês - nos eventos os mais pomposos
possíveis. "Fulano de Tal, profundo conhecedor da carioquice".
Previnam-se, caríssimos(as) passageiros(as), pois a carioquice é uma enfermidade espiritual, tanto mais séria na medida em que encontra ecos oficiais e cega o carioca quanto a sua própria experiência na cidade até esvaziá-la por completo, tornando-o um mero fantasma de si mesmo. Não por acaso o nosso prefeitóide, que de vez em quando circula pelas bandas da Portela e do Renascença - de chapeuzinho de malandro na cabeça e tudo! -, dá as caras no Cachambeer, toma banho no chuveirão de Madureira, dirige táxi e tudo o mais, parece ter feito da carioquice a sua meta síntese. "Viva a carioquice", diz o slogan da prefeitura, e nessa brincadeira as múltiplas potencialidades da cidade vão sendo aprisionadas na desgastada, porém ainda viva e perigosa, imagem de cidade maravilhosa, agora a partir do "Porto Maravilha".[1]
[1]
Aliás, vocês já repararam que se, de um lado, a repaginada Praça Mauá nos chama
para a Baía de Guanabara, por outro ela meio que volta a dar sentido à
perspectiva da Avenida Rio Branco?!
sexta-feira, 30 de outubro de 2015
Lava Jato
Avenida Brasil, altura de Padre
Miguel. 42,5º. Paro o carro no primeiro posto que vejo.[1]
Não porque precisava abastecê-lo, mas porque precisava lavá-lo. O serviço era
feito por um monte de moleques, magrinhos que só. Uns mais velhos, uns mais
novos. Todos pretos. Alegres, trocavam ideia entre si enquanto lavavam os
carros e se esquivavam do calor como podiam. Não reclamavam de nada. Observo a
cena a meia distância, abrigado na única sombra que acho, junto a um muro e um
banco de concreto.
- Aê, Crioulo, pega o pano aê!
- Negão, dá um valor aqui pra mim!
Chamavam-se, eles mesmos, de
crioulo e negão e que tais. Pensei em perguntar o porquê. Dizer na boa que
aquilo, de alguma maneira, os desvaloriza e, mais do que isso, desvaloriza a
todos nós e tudo o mais. Mas meu impulso professoral - não pela primeira vez -
é natimorto. Definitivamente não tenho nenhuma vocação pra convencer ninguém de qualquer coisa que seja. Por ninguém também quero dizer eu mesmo, esteja visto.
- Tá novo, meu chefe!
Pego a
carteira e, antes que pudesse abrí-la, o mais desenvolto deles me diz com ar de
quem se garante:
- Calma, calma, é melhor não se
precipitar. Dá uma olhada aí e vê primeiro se tá bem feito.
Dou uma risadinha de canto de boca. Confiro o resultado
displicentemente, pego a chave do carro e deixo dez pratas a mais de gorjeta.
Era sexta-feira. E os moleques merecem.
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Vidigal
Miguel Nunes Vidigal nasceu lá pela segunda metade dos setecentos. Dizem os colegas historiadores que era original de Angra dos Reis, que fazia parte da então Capitania do Rio de Janeiro, e que, vindo parar na Corte não me lembro como, galgou posições na hierarquia militar local até chegar ao posto de major da recém-criada Divisão Militar da Guarda Real de Polícia (1809). Pelos prestimosos serviços prestados, foi agraciado pelos monges beneditinos - vejam só vocês - com um generoso terreno ao pé do Morro Dois Irmãos, que corresponde hoje, a dedução é deveras fácil, ao Morro do Vidigal.
O verdadeiro major
Vidigal só não é mais interessante que o seu duplo literário, aquele que, nas Memórias de um Sargento de Milícias, perscruta a cidade de cabo a rabo e diuturnamente,
conhecedor que era de suas ruas, ruelas e travessas. Todas elas. Muito mais que
um chefe de polícia, Major Vidigal é como um espectro, onipresente e ameaçador.
Acompanhado de seus fieis granadeiros, que por sua vez carregavam consigo as
suas chibatas - apenas por prevenção evidentemente -, nada lhe escapa. Nada lhe
pode escapar. Ninguém o ludibria, a não ser que isso faça parte de um divertido
joguete, criado, claro, por ele mesmo para o seu bel e sádico prazer.
Vidigal
era inimigo confesso e particular das patuscadas. Não gostava de festas. Se
fosse de negros, diga-se de passagem a maioria da população na aurora do 19,
tanto pior. Candomblé, batuque, violão e capoeira? Nem pensar! Vidigal mandava
prender, mandava bater, mandava ajoelhar. Gosto particularmente do capítulo em
que Manuel de Almeida dedica a apresentação da personagem. Num determinado
momento, Vidigal adentra uma festa recheadas de súcias - que eram, digamos
assim, o nome dado pelos bons cristãos ao grupo sócio-cultural que hoje corresponde mais
ou menos à rapaziada que pega o 474 para ir à praia na Zona Sul. Adentra, como eu ia dizendo, e
manda que continuem a dançar. Até que os participantes cansam. E Vidigal manda
continuar. E eles cansam. E imploram para parar. E Vidigal desce-lhes, então,
satisfeito da vida, a lenha, de modo que eles passam a dançar, mas conforme
outra música.
Diz Calvino, não o suíço, mas o Ítalo, que toda cidade tem seus deuses próprios, espécie de ente mítico que a vinca e lhe imprime uma marca intemporal. Quer-se dizer, ainda que a cidade atravesse os séculos e que os arranjos primeiros de suas pedras se torne irreconhecível ao longo do tempo, alguns de seus elementos fundamentais a rodeiam e, vez por outra, vêm à tona, como que a relembrá-la de suas origens. Já eu, que não sou suíço nem ítalo, digo, sem desdenhar dos deuses, que a cidade também tem lá os seus demônios fundamentais. E que o Rio de Janeiro em particular, ninguém o poderá duvidar, possui uma boa penca deles. Vidigal é um. Não terá sido o primeiro. E nem o último.
terça-feira, 22 de setembro de 2015
474
Todos
os dias, 24 horas por dia, ele parte da Rua Álvaro Seixas, próximo ao Largo do
Jacaré, que fica na fronteira entre o bairro do mesmo nome e o Engenho Novo,
Zona Norte da cidade. Daí, quebra à esquerda para a Baronesa do Engenho Novo,
mais uma vez à esquerda para a Maximiniano de Figueiredo, contorna, pelo outro
lado, o Largo de onde saiu, ganha a Lino Teixeira, torna à direita para a
Carlos Costa até alcançar o bairro do Riachuelo e seguir o seu trajeto em
direção a Zona Sul da cidade.
Até
chegar a Rua Afrânio de Melo Franco, no Leblon, atravessa treze bairros, num
percurso de vinte e nove quilômetros - arredondando para baixo -, feitos em
aproximadamente uma hora, uma hora e meia, creio eu, a depender do trânsito. Percebam
que assumo aqui o ponto de vista de um único sentido, e por uma razão muito
simples: considero que, do contrário, seu itinerário ele mesmo não teria sentido
algum, pois carrega consigo apenas aqueles(as) que seguem, nos dias de semana, rumo
ao seu trabalho mal remunerado, e, nos fins de semana, rumo à praia. Na volta,
não leva outros(as) a outros lugares, apenas os(as) mesmos(as) de volta para casa, de modo
que trocam muito pouco com a cidade os seus passageiros(as), como se dela não
fizessem parte.
Treze
bairros, vinte e nove quilômetros, uma hora e meia, e ninguém parece se incomodar, a não
ser nos seus três bairros, cinco quilômetros e meio e quinze minutos para
chegar ao destino final. A partir dali, aí sim, ele incomoda. Sobretudo no
verão. E como no Rio é sempre verão, incomoda sempre. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que não incomodaria mesmo, e
muito, caso não se associassem as cenas de furto aos moleques pretos
despejados por ele na orla de Copacabana, Ipanema e Leblon. Isso porque são moleques
e pretos.
É
possível que, a partir do mês que vem, ele não passe da Candelária. É o que
estuda fazer a prefeitura, sem perceber que o 474 é a cidade, e que nele se
resumem suas potencialidades presentes e futuras. Impedi-lo de ir até a Zona
Sul nada mais é, passageiros e passageiras, que assinar o nosso termo de
fracasso e desistir da cidade. Um dia, teremos vergonha por não termos reagido
a isso. Esse será mais um de nossos já muito numerosos traumas coletivos.
*****
Em tempo: acabo de me lembrar que o prefeito andou projetando uma
pista de esqui para o Parque Madureira, sob a justificativa de fazer o povo
[sic], ao invés de Aspen, ir para o subúrbio, o que faria de nós uma cidade integrada, em sua própria perspectiva, é claro.
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Pequena Biografia Sentimental de Ismael Silva
Quem nasce sem eira nem beira
precisa estar atento para, no exato momento em que a brecha for dada - e sempre
haverá ao menos uma brecha -, inventar-se e inventar um mundo para si mesmo num
único golpe. Arte difícil essa, na qual Ismael Silva foi insuperável. Nascido
preto e pobre, filho mais novo de uma prole órfã de pai, saiu de Jurujuba ainda
criança para inventar o Estácio e, a partir de dele, uma cidade-mundo, abrigo dos
seus.
Propriamente
dito, jogar o joguinho - com a licença, seu João Antônio! - não sabia, não. Mas
ainda assim jogou. Jogou porque precisava jogar. E jogou com símbolos, dando
pernada em seus sentidos até que eles se tornassem ambíguos, móveis, e virassem
a seu favor. Eis aí a sua malandragem, aprendida na rua, certamente, mas
aplicada de maneira muito particular.
Ainda
criança, invadiu e surrupiou a escola, confundindo o inimigo. Em pouco tempo,
tomou-lhe o nome e fez-se ele mesmo professor. Mais do que isso: reivindicou o a
autoridade do gesto, como quem soubesse do seu significado para além do
superficial das criações. Quem inventou a escola de samba? "Fui eu!",
dizia Ismael, e "deixa falar quem quiser, tem que respeitar",
emendava logo em seguida.
Mas
Ismael inventou mais que isso. Tornou-se maestro de uma orquestra composta de
cuíca, surdo e tamborim, levando para a música toda uma nova experiência urbana
cotidiana. Sabia, mais do que ninguém, que era preciso injetar cadência e marcação
para que sua gente pudesse olhar para frente, de cabeça erguida, fingindo
ingenuidade enquanto tomava a cidade de assalto. E assim, foi no Estácio que Rio
de Janeiro se viu no espelho, sem maquiagem, pela primeira vez.
Não esteve à venda, mas vendeu muitos de seus samba. Vendeu não, foi profissional, que o jogo é jogado sempre. Com Francisco Alves, o Chico Viola, sua face visível, branca, aceitável, fez muita gente metida a besta pensar que era malandra. Fez o batuque subverter a civilização, ou antes fez a sua civilização adentrar o espaço de uma outra civilização que se pretendia a única possível. Com Noel Rosa, fez-se compositor respeitável. Nas rodas de intelectuais, fez-se moderno.
Sem eles, é verdade, a vida era difícil. Meteu-se em confusão. Talvez tivesse até matado se fosse preciso. Pegou cadeia. Deu a volta, não por cima, mas pela lateral. Morreu sozinho, numa pensão da Gomes Freire, aos setenta e três anos. Não guardou nada, que malandro que é malandro não tem tempo pra essas coisas, mas nos deixou de lambuja a arte da invenção, tão necessária nos dias que se vão.
terça-feira, 8 de setembro de 2015
Obrigado, Jackson!
Passou despercebido aqui no Rio o 31 de agosto
último, aniversário do paraibano José Gomes da Silva que, acaso estivesse vivo,
completaria 96 anos. Eu sei que tem muito Zé na Paraíba, e por isso serei imediatamente
mais específico: falo daquele que gostava tanto de cinema americano
que se rebatizou "Jack", passando logo a "Jackson". Sim, o "do
Pandeiro"!
Esteja
visto, portanto, que antes mesmo de misturar chiclete com banana, Jackson do
Pandeiro já misturava forró com Hollywood e tudo mais que lhe desse na veneta. E
foi com esse espírito que ele chegou ao Rio de Janeiro, quando corria o ano de
1954 e, todo mundo sabia, mas crer ninguém parecia, os dias do Rio de Janeiro
como capital estavam contados. Por outro lado, aos olhos de hoje pode até parecer
que ninguém sabia, mas já havia toda uma "bossa" no ar bem antes do
surgimento da "bossa nova", gênero que, dali em diante, reivindicaria
para si o pioneirismo e o monopólio de todo um jeito novo, um num sei quê
temperado com sofisticado e juvenil otimismo musical.
Logo
de início, Jackson do Pandeiro causou verdadeiro furor na cidade ao gravar
cinco 78 rpm's, o primeiro dos quais com "Forró em Limoeiro" no lado
A e "Sebastiana" no lado B. Há quem diga que, por sua habilidade para
dividir melodias a torto e a direito, Jackson do Pandeiro abriu caminho para um
jovem baiano chamado João Gilberto. Não acato nem desacato a ideia, mas lembro
que, para início de conversa, antes seria preciso passar a bola para um tal de
Wilson Baptista e um outro tal de Geraldo Pereira, para ficar com apenas dois poucos
e bons exemplos.
Mas, na verdade, o que eu queria dizer é que o carioca deve a Jackson do Pandeiro uma das maiores sacaneadas que ele já sofreu, e pelo visto sem perceber. Estou falando de "A Ordem é Samba", lançada em 1966 no álbum não por acaso intitulado O Cabra da Peste. Ali o mestre do ritmo embola os conteúdos dos termos e denuncia de maneira sutil uma das maldições que recaem sobre a cidade: a do samba como prisão, digo, aquela que ganha as raias oficiais e oficiosas até engessar identidades e limitar experiências. Sendo assim, toda vez que um carioca desavisado enche o peito de orgulho para cantar que "No Rio de Janeiro todo mundo vai de samba/ a pedida é sempre samba [...]/Lá vai lá vou eu de samba/a ordem é samba e nada mais", Jackson dever dar uma risadinha esteja lá onde estiver. E por isso mesmo, obrigado, Jackson!
segunda-feira, 25 de maio de 2015
Ainda há?
A matéria trazia um monte de dados
estatísticos e descrições metodológicas, além de um clamor geral pela
preservação ambiental dessa cidade que, não obstante chamada Rio, tem feito os
seus de privada, inclusive o Carioca, para vocês verem o ponto a que chegamos.
Mas o que me deixou mesmo embasbacado foi o título, que anunciava a
identificação de uma área de vegetação nativa na Floresta da Tijuca que
correspondia a algo como 42 mil Maracanãs.
Termino
a leitura - "42 mil Maracanãs de floresta!" - e fico ainda um bom tempo
pensando naquela associação - "Maracanã...Floresta, Floresta...
Maracanã..." -, até que na curva do pensamento esbarro com o general.
Melhor dizendo, lembro da Curva da Amendoeira e do general Ângelo Mendes de
Morais.
Explico-me:
foi sob a administração de Mendes de Morais (1947-1951), empossado por outro
general, o Eurico Gaspar Dutra, numa época em que, por ser Distrito Federal, os
prefeitos da cidade eram nomeados diretamente pelo presidente da república, que
foi construído o estádio do Maracanã para a fatídica Copa do Mundo de 1950. A realização
da obra era polêmica e entre os seus muitos opositores estava o então vereador Carlos
Lacerda, de modo que a atuação de Mendes de Morais foi decisiva para que o projeto
fosse levado adiante, e com apoio popular ainda por cima.
E
a Curva da Amendoeira? Bem, a curva ainda está lá, entre Flamengo e Botafogo,
no entroncamento da Avenida Oswaldo Cruz com a Rui Barbosa, cuidada de perto
por Cuauhtémoc, o imperador asteca cujo
corpo tombou diante das tropas de Cortez, e cuja estátua por algum milagre não teve
o mesmo fim diante das obras do Aterro do Flamengo. Mas se a curva continua, a
Amendoeira não. Foi retirada dali a mando do mesmo Mendes de Morais, o entusiasta
do Maracanã. A justificativa, se é que havia uma, eu confesso que não sei. E na
verdade tive preguiça de pesquisar. Não importa. O fato é que, se na Floresta
da Tijuca ainda há floresta, na Curva da Amendoeira já não há mais a imponente
amendoeira que lhe deu nome e identidade. E por falar nisso - assim é o Rio de
Janeiro -, perguntar não ofende: acaso ainda há Maracanã no Maracanã?
segunda-feira, 6 de abril de 2015
Notas do subúrbio I
Cascadura
Colado na vidraça do cartório, o
solitário bilhete manuscrito atrapalhava a comunicação visual entre público e
funcionários.
Papel tosco, bastante amassado,
como se tivesse sobrevivido a uma batalha qualquer, trazia em letras garrafais
o lasso apelo:
"Favor não batucar no
balcão".
Ninguém o assinava. Muito menos agradecia.
segunda-feira, 23 de março de 2015
O segredo que mora na Rua Sara
- Quer saber de uma coisa?!
E a velha, de olhos pequenos, me mostrava o cigarro de
filtro amarelo que trazia na mãos de dedos curtos e pele enrugada. Como eu não
respondesse, insistiu com sua voz rouca:
- Quer saber de uma coisa, meu filho?!
(Não, não queria, mas senti que seria inútil dizê-lo).
- Tem que ter muito cuidado pra acender cigarro dos outros,
viu? O quê?! Tuberculose é foda... Passa até pelo tato! Olha aqui como eu
faço...
E me mostrava o maço, que contava apenas dois cigarros virados
de cabeça pra baixo, filtros protegidos. Ato contínuo, pedia para que eu
ascendesse com o meu o cigarro dela, o que fiz sem demonstrar qualquer
interesse pela recomendação.
- Vivi a vida toda aqui. Nasci aqui, praticamente. Conheço
todo mundo aqui. (Fez uma pausa meio programada) E digo mais: todo mundo me
respeita nessa porra! É...porque eu sou atrevida. Toda Cecília (chamava-se
Cecília) é atrevida, hein!
Estava sozinha no bar. Em sua mesa, uma cerveja barata reinava só. Não me olhava propriamente nos olhos enquanto falava.
- Ó...(com um gesto chamou-me para mais perto, como quem
fosse contar um segredo). Conhece Laranjeiras? Conhece a Rua Alice? Conhece a
Casa Rosa?! Então, trabalhei lá por onze anos! Onze anos trabalhei lá! Tive
três filhos: um com dezessete, outro com vinte e outro com quarenta e quatro.
Quarenta e quatro! (aparentava muito mais). Conhece alguém assim?! Pois é! E meus filhos sabiam de tudo,
que eu nunca escondi de ninguém, não! Descia e subia esse morro todo santo dia,
debaixo de sol, debaixo de chuva. Agora tô aqui... Ih... puta que pariu... lá vem
minha neta me pedir dinheiro! Primeiro de tudo diz boa noite pro moço!
Apresentou-me a criança. Foi a única vez que interagi com
palavras:
- Boa noite.
Chovia. Um carro rompeu o silêncio da rua que parecia
dormir.
segunda-feira, 16 de março de 2015
Rubem Braga estava certo
Fui pego de surpresa quando liguei a TV em pleno domingo, dia do Senhor, e pude ver com meus próprios olhos a profecia se cumprir. Num primeiro momento, confesso que não consegui acreditar no que via. Mas logo lembrei do ignorado presságio do cronista - "Ai de ti, Copacabana!" - e constatei que o fim havia chegado: o fogo não veio, é verdade, mas a antiga Sacopenapã fora, enfim, invadida por um mar furioso e sedento de cada um de seus metros quadrados muito bem especulados.
Enquanto eu, da minha distante e pacata Praça Seca, assistia àquilo tudo e me sentia um peixe fora d'água, em plena Avenida Atlântica cardumes de toda espécie faziam a festa, mormente os "Verde-Amarelo-CBF", recém-saídos das varandas marítimas, muito embora no fundo, no fundo, o ritmo da maré fosse ditado mesmo pelos tubarões. E todos dançavam sem jeito e sem graça, mexendo as barbatanas conforme a música.
Só senti um alívio no peito e percebi que havia me ancorado na ilha certa quando Iemanjá, inquirida ao vivo por um repórter da Globo, disse com muita elegância que não tinha absolutamente nada a ver com aquilo. Que não metessem o nome dela naquela história. E que, muito pelo contrário, se dependesse dela a destruição de Copacabana aconteceria de cima pra baixo, ou melhor, morro abaixo.
De todo modo, foi triste constatar que Rubem Braga estava certo em suas tortas linhas. Pobre Copacabana! Felizmente que o apocalipse durou só um dia. Mas o pesadelo, parece, durará ainda um tanto, prato cheio para os psicanalistas do bairro, um dos quais já me disse que o grande desafio de seus pares vai ser descobrir em que momento seus moradores perderam a autoestima e passaram a imitar os da Avenida Paulista.
segunda-feira, 9 de março de 2015
Olavo Bilac, o primeiro “ruim de roda” do Rio de Janeiro.*
Ainda no mesmo ano, cedendo aos apelos
do amigo Olavo Bilac (1865-1918), um das figuras mais destacadas da poesia
parnasiana no Brasil, José do Patrocínio resolveu emprestar seu carro para que
o poeta pudesse experimentar a sensação de dirigir, mesmo não sendo habilitado.
Mal sabiam eles que, por esse acaso, ficariam marcados na história como os
protagonistas do primeiro acidente de automóvel de que se tem notícia na
cidade.
Como o modelo seguia padrões ingleses, Bilac, na época com trinta e
dois anos, sentou-se a direita, no banco do motorista, e Patrocínio à esquerda,
como carona. Depois de alguns quilômetros, o poeta perdeu o controle do veículo
e, à velocidade de inacreditáveis 3 Km/h , acabou atingindo em cheio uma árvore na
Estrada Velha da Tijuca. Saíram ilesos. Já o carro não teve a mesma sorte: partiu
o tronco e caiu no barranco. Perda total. Desolado, mas poupando o amigo, Patrocínio
teria praguejado aos céus e colocado a culpa nas péssimas ruas cariocas,
verdadeiros obstáculos ao progresso da cidade.
*Texto originalmente publicado como Box no artigo de minha autoria intitulado "Muito antes dos 20 centavos". Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8. nº 96. setembro 2013. p.46
segunda-feira, 2 de março de 2015
Parabéns atrasado
Estrada da Cancela Preta, fronteira entre Bangu e Padre Miguel, Rio de Janeiro. Lá pelas tantas da Avenida Brasil, mais de 45 km de distância de Ipanema, metonímia da cidade-globeleza que, ao contrário da propaganda, não tem tantos 450 anos assim. A vista para a Serra do Mendanha garante o destaque para a natureza em meio aos poucos prédios construídos ao redor.
É de manhã, mas o calor é de fazer ferver água de coco.
Na sala, quarenta e cinco adolescentes quase todos pretos ou quase brancos pobres como pretos, como diria Caetano, e eu, que, também preto, arrumo um
pretexto para sair dela de dez em dez minutos, assim como eles. Mas a vida é escola, a escola
ensina, e é preciso aprender. Recordemos então a lição, que há muito andava
esquecida:
- João, meu camarada, quebra um galho pra mim?
E o gari, que já havia contado vantagem mais cedo por
ter sido campeão no carnaval (desfilara na Estácio), além de ter arrumado uma
grana com um barraquinha na Sapucaí, me responde com um sorriso de esgrimista que golpeia nas pequenas brechas que a vida dá:
- Quem quebra galho é macaco gordo, professor! E eu sou levinho, levinho...
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015
Como manda a nossa marcha
"Acabou nosso carnaval", lembra a letra da
marcha que ainda ecoa, viva, entre buzinas e fumaças nessa segunda-feira
ensolarada. Os dias de intenso delírio e otimismo gratuito terminam e começam, e
terminam como começam assim, sem fim algum.
"Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se
vê, que nem se sorri, se beija e se abraça e sai caminhando, dançando e
cantando cantigas de amor", lamenta a marcha. Sábia marcha que no entanto ainda
se ergue da sarjeta para acenar a cada um dos componentes da alma lavada ao relento,
os quais, sem perceber, acenam de volta e a cantam sem saber enquanto caminham sozinhos
para o trabalho.
Não, não é preciso contar a ninguém a nossa
experiência durante esses dias recém-passados...Todos os que se entreolham no
dia de hoje, somos cúmplices de nós mesmos. É como se já soubéssemos e compartilhássemos
intimamente o mesmo ar de compreensão. Cumprimentemo-nos a nosso modo, então, em
segredo, em silêncio, sem culpa por ter apenas sido, e a troco de nada.
O colorido que resiste nas calçadas aos poucos cede lugar
ao cinza do asfalto, é verdade, mas ainda está lá. O corpo, há pouco invencível,
cede às cinzas e ao cansaço, mas ainda está aí. A vida caminha e se aproxima do
seu contrário, mas, enquanto isso, ainda segue, muito embora pareça sem rumo.
O carnaval, caros(as) passageiros(as), só não acaba porque,
propriamente dito, nunca começou. Seu tempo não pertence à história, mas à memória.
Por isso é que ele vive no folião, ainda que este não o viva o tempo todo.
"E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é
preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade", insiste a marcha. Insistamos
também e, em meio à máscaras mal encaradas e furiosas, vistamos a fantasia do
cotidiano rumo ao que der e vier, "pra ver e brincar outros carnavais, que
marchas tão lindas, e o povo cantando seu canto de paz", como manda a
nossa marcha.
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015
A cabrocha e a galinha
Até o início do século passado, o Centro do Rio de Janeiro concentrava
a maior parte da população carioca, de modo que a distinção pública entre os
mais ricos e os mais pobres se dava menos pela ocupação espacial que pela vestimenta
e pelo tipo de habitação. Enquanto os primeiros habitavam os casarões e
vestiam-se à lá França, os segundos moravam em habitações coletivas ou nas
favelas e vestiam-se com o que dava.
Mas, na medida em que a cidade foi crescendo e se
expandindo, as desigualdades sociais foram ficando cada vez mais marcadas
espacialmente a partir dos pólos Zona Norte e Zona Sul, de modo que já na
década de 1940, as diferenças entre esses dois Rios já era nítida.
Os bairros à beira-mar - Copacabana à frente -,
beneficiados por uma série de melhoramentos promovidos por Cabrão e sua turma,
despontavam como o lugar do novo - e rico - moderno.
A garota de Ipanema, muito antes de Tom e Vinícius, já
era um tipo conhecido nos bondes que circulavam por aquelas bandas e que
traziam "as mais lindas cabrochas do Rio", como diz a letra da
marchinha "Lá vem o Ipanema", de Roberto Roberti e Marina Batista,
gravado por Déo para a folia de 1948:
Lá vem o Ipanema, o
bonde que nunca viaja sozinho
Lá vem o Ipanema,
trazendo as mais lindas cabrochas do Rio
Quando ele entra
triunfal no tabuleiro
Meu coração vibra
mais forte que um pandeiro
É ele quem resolve
meu problema
Trazendo Isabel, trazendo
Marina, trazendo Iracema (https://www.youtube.com/watch?v=G_99QOAA2SQ)
Já nos bondes do outro lado da cidade, onde o estilo
de vida (sub)urbano mal se distinguia completamente do rural, o ambiente não era assim tão propício ao flerte, pois seus passageiros
tinham outras preocupações, como disputar espaço, no banco ou no estribo, com
galinhas e outro animais, vide a "Tem galinha no bonde", de Haroldo
Lobo e Milton de Oliveira, gravada por Araci de Almeida para o Carnaval de
1942:
Tem galinha no bonde
Tem, tem, que eu vi
Galinha no bonde é abacaxi!
Pára, pára, desce, desce!
Salta, tem que saltar!
Galinha e outros bichos
Não podem viajar
Daqui a pouco o Juca
Traz o galo garnizé
Isso até tá parecendo
A Arca de Noé!
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
A tristeza da alegria e a alegria da tristeza
Estão errados aqueles que pensam que a folia de Momo é só alegria barata e superficial. Não, senhor(a)! Para o carioca, carnaval é coisa séria e carrega consigo os paradoxos da vida também. O folião legítimo, reparem bem caríssimos(as) passageiros(as), oscila entre aquele(a) que é feliz de tão triste e o que é triste de tão feliz, muito embora a diferença entre um e outro prato da balança não seja lá muito clara. Daí os muitos sambas e marchinhas que trazem como motivo o revanchismo, a resignação ou a espera do (re)encontro com os trilhos certos da própria vida.
Tão (in)esperados quanto fugidios, os (des)encontros
amorosos, por exemplo, tiveram lugar garantido carnavais entre as décadas de
1920 e 1960, mesmo que fosse em pé, no estribo no bonde, lugar que, por sempre
caber mais um, é comparado ao coração de uma pequena ou de um rapazola sem
coração algum na marchinha "Endereço Errado", de Paulo de Carvalho,
gravada por Carmem Miranda para o carnaval de 1938:
Amor eu sei que
você não tem não
Mas isso não faz mal algum
Seu coraçãozinho é um estribo de bonde
que tem sempre lugar p'rá um
(https://www.youtube.com/watch?v=ia8K7MNoNjU)
Mas isso não faz mal algum
Seu coraçãozinho é um estribo de bonde
que tem sempre lugar p'rá um
(https://www.youtube.com/watch?v=ia8K7MNoNjU)
Tem também a "Pára
o bonde", de Antônio de Almeida, sucesso na voz de Vassourinha, no
carnaval de 1942. Aqui, vemos um distraído sujeito que pega o bonde errado e, assim
mesmo, vai até o fim da linha para pensar nas próprias mágoas:
Quando eu pego o bonde errado
Vou até o fim da linha
E pra disfarçar as mágoas
Vou tocando a campainha
Outro dia eu distraí
Passeando com meu bem
Peguei o Estrada de Ferro
Pensando que fosse trem
Já o belíssimo samba
"E o 56 não veio...", de Wilson Batista, gravado em 1944, narra
a tristeza do camarada que espera uma hora (!) a amada no ponto do bonde apelidado justamente - vejam vocês! - de Alegria, linha de número 56 que
partia da praça XV em direção a Rua Licínio Cardoso (São Francisco Xavier),
passando pela Rua da Alegria (Caju). Dado o traçado do bonde, é de se imaginar
que a pequena, se era humilde, de boba não tinha nada. Na certa, preferiu os
mistérios e os flertes da cidade ao convencional namorinho no portão:
Eu ontem esperei ás
7 em ponto
Ainda dei uma hora de desconto
Os ponteiros do relógio pareciam me dizer
"Vai embora meu amigo ela não vai aparecer"
Ainda dei uma hora de desconto
Os ponteiros do relógio pareciam me dizer
"Vai embora meu amigo ela não vai aparecer"
Será que ela não veio porque se zangou?
Ou o bonde Alegria descarrilou?
Ou o bonde Alegria descarrilou?
Houve qualquer
coisa de anormal
Ela sempre foi pra mim tão pontual
Fui ao chefe da Light, perguntei ao inspetor
"O que houve com o 56? Esse bonde sempre trouxe o meu amor".
Ela sempre foi pra mim tão pontual
Fui ao chefe da Light, perguntei ao inspetor
"O que houve com o 56? Esse bonde sempre trouxe o meu amor".
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