Quem nasce sem eira nem beira
precisa estar atento para, no exato momento em que a brecha for dada - e sempre
haverá ao menos uma brecha -, inventar-se e inventar um mundo para si mesmo num
único golpe. Arte difícil essa, na qual Ismael Silva foi insuperável. Nascido
preto e pobre, filho mais novo de uma prole órfã de pai, saiu de Jurujuba ainda
criança para inventar o Estácio e, a partir de dele, uma cidade-mundo, abrigo dos
seus.
Propriamente
dito, jogar o joguinho - com a licença, seu João Antônio! - não sabia, não. Mas
ainda assim jogou. Jogou porque precisava jogar. E jogou com símbolos, dando
pernada em seus sentidos até que eles se tornassem ambíguos, móveis, e virassem
a seu favor. Eis aí a sua malandragem, aprendida na rua, certamente, mas
aplicada de maneira muito particular.
Ainda
criança, invadiu e surrupiou a escola, confundindo o inimigo. Em pouco tempo,
tomou-lhe o nome e fez-se ele mesmo professor. Mais do que isso: reivindicou o a
autoridade do gesto, como quem soubesse do seu significado para além do
superficial das criações. Quem inventou a escola de samba? "Fui eu!",
dizia Ismael, e "deixa falar quem quiser, tem que respeitar",
emendava logo em seguida.
Mas
Ismael inventou mais que isso. Tornou-se maestro de uma orquestra composta de
cuíca, surdo e tamborim, levando para a música toda uma nova experiência urbana
cotidiana. Sabia, mais do que ninguém, que era preciso injetar cadência e marcação
para que sua gente pudesse olhar para frente, de cabeça erguida, fingindo
ingenuidade enquanto tomava a cidade de assalto. E assim, foi no Estácio que Rio
de Janeiro se viu no espelho, sem maquiagem, pela primeira vez.
Não esteve à venda, mas vendeu muitos de seus samba. Vendeu não, foi profissional, que o jogo é jogado sempre. Com Francisco Alves, o Chico Viola, sua face visível, branca, aceitável, fez muita gente metida a besta pensar que era malandra. Fez o batuque subverter a civilização, ou antes fez a sua civilização adentrar o espaço de uma outra civilização que se pretendia a única possível. Com Noel Rosa, fez-se compositor respeitável. Nas rodas de intelectuais, fez-se moderno.
Sem eles, é verdade, a vida era difícil. Meteu-se em confusão. Talvez tivesse até matado se fosse preciso. Pegou cadeia. Deu a volta, não por cima, mas pela lateral. Morreu sozinho, numa pensão da Gomes Freire, aos setenta e três anos. Não guardou nada, que malandro que é malandro não tem tempo pra essas coisas, mas nos deixou de lambuja a arte da invenção, tão necessária nos dias que se vão.
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