quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental


As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Principio, como o faz Alberto Mussa em seu último romance, com uma frase que, a rigor, deveria ser a conclusão desta crônica. Mas não faz mal. O sujeito das quintas, que não se deve confundir com um sujeito de quinta, tem dessas coisas. Enquanto todo mundo vive a expectativa do dia seguinte, ele não sabe, não pode e nem tampouco quer esperar o derradeiro parágrafo.

Logo eu, que nasci num sábado de carnaval, fui adorar a quinta-feira. Ando desconfiado de que toda essa inclinação possa ter a ver com o orixá que me guia, o que me foi revelado numa curimba há alguns anos lá pelas bandas de Campo Grande. Sabem como é, né: vida de ateu não praticante não é moleza, não.

Não que eu desconsidere os demais dias da semana. Não é isso. Mas eu sempre achei que a quinta-feira, especialmente a quinta, era o meu dia. Ou pelo menos desde os tempos de faculdade, nem tão longínquos assim. Podia até tomar umas num dia ou outro, escolhidos aleatoriamente conforme o calor, a vontade ou as duas coisas juntas. Não vou negar. Mas quinta-feira era diferente. Era dia do meu ritual: Bar da Frente, Cintra e biscoito Torcida, que eu não fujo das derrotas do passado, não senhores! Copo era - e continua sendo - americano, por favor! Os amigos chegavam depois, bem depois, mas chegavam. Como que por telepatia.

Mas vamos às razões, afinal de contas todo mundo tem as suas. Nas quintas, há um quê de compostura no ar. Não diante da vida, mas da morte. Há mais dignidade, portanto, numa quinta-feira. Reparem só os bares, onde nas quintas-feiras os seres flertam abertamente com o acaso, desafiam-no na purrinha e, ainda por cima, dão uma bela de uma borrada na assepsia produtiva da semana, que fica em aberto, maculada. Os da quinta, em resumo, não suportam redenções enlatadas e debocham dos que assim procedem. Por essas e outras, e sobretudo nos tempos que correm, há que se ter muito respeito pelo sujeito que chega de ressaca no trabalho numa sexta-feira. Vejam: matar o batente não adiantaria de nada, ainda que o corpo suplique. É preciso exibir com orgulho a ressaca para o povo das sextas.

Já os bares do dia seguinte se enchem de gente excessivamente frívola e monótona. Esses mesmos, que entornam o caldo na sexta, e esperam ansiosamente por isso, para poderem recolher - enquanto recolhem-se - calmamente toda a sujeira no sábado e preservar, assim, a ordem das coisas. Tudo está no seu lugar, graças a deus!, ainda que a cabeça esteja zureta.

Não, não. Obrigado, mas não. As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Anotem aí: estejam todos convidados pro meu dia. Costumo celebrá-lo aqui mesmo, no BF, microcosmo do centro do Rio, meu canto mais recente e pra onde voltei depois de uns bordejos na Zona Oeste. Mas a quinta-feira continua a mesma. E minha. É só chegar.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Isabel que não foi princesa

Cinquenta anos depois que Isabel, a princesa, assinou a Lei Áurea, nascia, na cidade de Niterói, Isabel Souza Lima. É, na verdade, o que consta em seu registro de nascimento. Porque essa Isabel de que trato aqui costumava comemorar seu aniversário em outra data, dizendo a todos ter nascido a 28 de novembro, mas de que ano ninguém sabe ao certo. Muito menos ela.

Isabel fazia parte da extensa prole do casal Malvino Alves de Souza e Adelia Costa Souza. Ele pedreiro, ela lavadeira. Todos, pais, filhos e irmãos, negros. Como a imensa maioria das meninas pobres e negras de seu tempo, Isabel teve uma infância dura. Ainda criança, precisou ajudar sua mãe com a entrega das roupas. E foi assim que acabou passando à guarda de outra família, que a ela se afeiçoou e tomou para si a responsabilidade de criá-la.

Sua educação foi primária e, na adolescência, foi trabalhar na fábrica de fósforos Fiat Lux, no bairro operário do Vila Lage, em São Gonçalo. Mas seu conhecimento vinha mesmo era do tete-a-tete com a vida, que a ensinou em algum momento, provavelmente muito cedo, que para sobreviver era preciso imaginar-se num carnaval, com toda a sua euforia melancólica de alegorias, máscaras, confetes, serpentina e lança-perfume.

E Isabel brincou. E nessa brincadeira conheceu Betinho, negro garboso que na verdade se chamava Beethoven Silva Lima, num baile da Sociedade Carnavalesca Mimoso Manacá. Casaram-se em 1959, quando ela contava, portanto, com 18 ou 19 anos de idade. Logo vieram os filhos, ou melhor, as filhas. Duas. Ligia e Leila.

Isabel foi forte, mas não foi rude. Serviu à família e segurou as pontas quando Betinho, metido a malandro, aprontava das suas. E não foram poucas. As filhas, criou-as como pôde e a partir de sua própria experiência. Escola, uniforme, cabelo alisado na marra. Por força das circunstâncias, acabou por criar também os três netos, Rafael, Larissa e Gabriel. Todos devidamente rezados com o cú virado pra lua e levados com jujubas numa mão e um chinelo ameaçador na outra, só pra garantir.

Minha avó morreu quando eu tinha 14 anos. Nasceu livre mas não pôde se libertar de todo. E talvez soubesse disso. Mas que brincou, brincou. Gostava de dançar. Arrumava-se toda. Tomava lá a sua cervejinha e fumava escondida no quintal. E ria. E gargalhava. Não se sabe se foi feliz. É que, no carnaval da vida, borram-se os contornos que delimitam o íntimo e o superficial. E vó Isabel, que não foi princesa, adorava carnaval.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Carioquice

Há bastante tempo recai sobre o Rio um quebranto que nem mesmo as incontáveis entidades que por aqui batem ponto têm conseguido desfazer. Sua origem - como é da natureza dos quebrantos - é mítica e, como não manjo nada de mitologia, deixo-a para os iniciados de plantão. Só sei que, por algum vacilo junto aos deuses - sempre o vacilo! - o carioca parece irremediavelmente condenado a ter um problema medonho com sua própria identidade.

Trocando em miúdos é o seguinte: como a gente foi capital durante muito tempo, não temos nenhuma tradição de nos pensar regionalmente. Quer-se dizer: ou bem o carioca acaba girando em torno de si mesmo ou inventa - e acredita na própria invenção - que é o espelho do país. Na verdade, as duas coisas não apenas andam juntas, como se entrelaçam e dão origem a chamada carioquice, que voltou à moda por conta dos 450. Recentemente surgiram até especialistas no assunto - vejam só vocês - nos eventos os mais pomposos possíveis. "Fulano de Tal, profundo conhecedor da carioquice".

Previnam-se, caríssimos(as) passageiros(as), pois a carioquice é uma enfermidade espiritual, tanto mais séria na medida em que encontra ecos oficiais e cega o carioca quanto a sua própria experiência na cidade até esvaziá-la por completo, tornando-o um mero fantasma de si mesmo. Não por acaso o nosso prefeitóide, que de vez em quando circula pelas bandas da Portela e do Renascença - de chapeuzinho de malandro na cabeça e tudo! -, dá as caras no Cachambeer, toma banho no chuveirão de Madureira, dirige táxi e tudo o mais, parece ter feito da carioquice a sua meta síntese. "Viva a carioquice", diz o slogan da prefeitura, e nessa brincadeira as múltiplas potencialidades da cidade vão sendo aprisionadas na desgastada, porém ainda viva e perigosa, imagem de cidade maravilhosa, agora a partir do "Porto Maravilha".[1] 

Agarremo-nos aos nossos protetores. São Manuel Antônio de Almeida, São Lima Barreto, São João do Rio, São Marques Rebelo, vigiai e protegei! São Noel Rosa, São Ismael Silva, São Pixinguinha, Donga João da Baiana e Clementina, que embora de Jesus invoca forças muito mais pertinentes ao caso em questão. Convoquemos também Aldir Blanc! Não se esqueçam do Melodia, pra prender bem nosso cansaço. E seguremos as pontas, porque, vocês sabem, quando tem muita visita o senhorio capricha nas aparências. E ano que vem o bicho pega.




[1] Aliás, vocês já repararam que se, de um lado, a repaginada Praça Mauá nos chama para a Baía de Guanabara, por outro ela meio que volta a dar sentido à perspectiva da Avenida Rio Branco?!

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Lava Jato



Avenida Brasil, altura de Padre Miguel. 42,5º. Paro o carro no primeiro posto que vejo.[1] Não porque precisava abastecê-lo, mas porque precisava lavá-lo. O serviço era feito por um monte de moleques, magrinhos que só. Uns mais velhos, uns mais novos. Todos pretos. Alegres, trocavam ideia entre si enquanto lavavam os carros e se esquivavam do calor como podiam. Não reclamavam de nada. Observo a cena a meia distância, abrigado na única sombra que acho, junto a um muro e um banco de concreto.

- Aê, Crioulo, pega o pano aê!
- Negão, dá um valor aqui pra mim!

Chamavam-se, eles mesmos, de crioulo e negão e que tais. Pensei em perguntar o porquê. Dizer na boa que aquilo, de alguma maneira, os desvaloriza e, mais do que isso, desvaloriza a todos nós e tudo o mais. Mas meu impulso professoral - não pela primeira vez - é natimorto. Definitivamente não tenho nenhuma vocação pra convencer ninguém de qualquer coisa que seja. Por ninguém também quero dizer eu mesmo, esteja visto.

- Tá novo, meu chefe!

Pego a carteira e, antes que pudesse abrí-la, o mais desenvolto deles me diz com ar de quem se garante:

- Calma, calma, é melhor não se precipitar. Dá uma olhada aí e vê primeiro se tá bem feito.

Dou uma risadinha de canto de boca. Confiro o resultado displicentemente, pego a chave do carro e deixo dez pratas a mais de gorjeta. Era sexta-feira. E os moleques merecem.





[1] Eu sei que é um troço antiquado, mas ainda não consegui me livrar do carro.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Vidigal


Miguel Nunes Vidigal nasceu lá pela segunda metade dos setecentos. Dizem os colegas historiadores que era original de Angra dos Reis, que fazia parte da então Capitania do Rio de Janeiro, e que, vindo parar na Corte não me lembro como, galgou posições na hierarquia militar local até chegar ao posto de major da recém-criada Divisão Militar da Guarda Real de Polícia (1809). Pelos prestimosos serviços prestados, foi agraciado pelos monges beneditinos - vejam só vocês - com um generoso terreno ao pé do Morro Dois Irmãos, que corresponde hoje, a dedução é deveras fácil, ao Morro do Vidigal.

O verdadeiro major Vidigal só não é mais interessante que o seu duplo literário, aquele que, nas Memórias de um Sargento de Milícias, perscruta a cidade de cabo a rabo e diuturnamente, conhecedor que era de suas ruas, ruelas e travessas. Todas elas. Muito mais que um chefe de polícia, Major Vidigal é como um espectro, onipresente e ameaçador. Acompanhado de seus fieis granadeiros, que por sua vez carregavam consigo as suas chibatas - apenas por prevenção evidentemente -, nada lhe escapa. Nada lhe pode escapar. Ninguém o ludibria, a não ser que isso faça parte de um divertido joguete, criado, claro, por ele mesmo para o seu bel e sádico prazer.
            
Vidigal era inimigo confesso e particular das patuscadas. Não gostava de festas. Se fosse de negros, diga-se de passagem a maioria da população na aurora do 19, tanto pior. Candomblé, batuque, violão e capoeira? Nem pensar! Vidigal mandava prender, mandava bater, mandava ajoelhar. Gosto particularmente do capítulo em que Manuel de Almeida dedica a apresentação da personagem. Num determinado momento, Vidigal adentra uma festa recheadas de súcias - que eram, digamos assim, o nome dado pelos bons cristãos ao grupo sócio-cultural que hoje corresponde mais ou menos à rapaziada que pega o 474 para ir à praia na Zona Sul. Adentra, como eu ia dizendo, e manda que continuem a dançar. Até que os participantes cansam. E Vidigal manda continuar. E eles cansam. E imploram para parar. E Vidigal desce-lhes, então, satisfeito da vida, a lenha, de modo que eles passam a dançar, mas conforme outra música.

Diz Calvino, não o suíço, mas o Ítalo, que toda cidade tem seus deuses próprios, espécie de ente mítico que a vinca e lhe imprime uma marca intemporal. Quer-se dizer, ainda que a cidade atravesse os séculos e que os arranjos primeiros de suas pedras se torne irreconhecível ao longo do tempo, alguns de seus elementos fundamentais a rodeiam e, vez por outra, vêm à tona, como que a relembrá-la de suas origens. Já eu, que não sou suíço nem ítalo, digo, sem desdenhar dos deuses, que a cidade também tem lá os seus demônios fundamentais. E que o Rio de Janeiro em particular, ninguém o poderá duvidar, possui uma boa penca deles. Vidigal é um. Não terá sido o primeiro. E nem o último. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

474


Todos os dias, 24 horas por dia, ele parte da Rua Álvaro Seixas, próximo ao Largo do Jacaré, que fica na fronteira entre o bairro do mesmo nome e o Engenho Novo, Zona Norte da cidade. Daí, quebra à esquerda para a Baronesa do Engenho Novo, mais uma vez à esquerda para a Maximiniano de Figueiredo, contorna, pelo outro lado, o Largo de onde saiu, ganha a Lino Teixeira, torna à direita para a Carlos Costa até alcançar o bairro do Riachuelo e seguir o seu trajeto em direção a Zona Sul da cidade.

Até chegar a Rua Afrânio de Melo Franco, no Leblon, atravessa treze bairros, num percurso de vinte e nove quilômetros - arredondando para baixo -, feitos em aproximadamente uma hora, uma hora e meia, creio eu, a depender do trânsito. Percebam que assumo aqui o ponto de vista de um único sentido, e por uma razão muito simples: considero que, do contrário, seu itinerário ele mesmo não teria sentido algum, pois carrega consigo apenas aqueles(as) que seguem, nos dias de semana, rumo ao seu trabalho mal remunerado, e, nos fins de semana, rumo à praia. Na volta, não leva outros(as) a outros lugares, apenas os(as) mesmos(as) de volta para casa, de modo que trocam muito pouco com a cidade os seus passageiros(as), como se dela não fizessem parte.

Treze bairros, vinte e nove quilômetros, uma hora e meia, e ninguém parece se incomodar, a não ser nos seus três bairros, cinco quilômetros e meio e quinze minutos para chegar ao destino final. A partir dali, aí sim, ele incomoda. Sobretudo no verão. E como no Rio é sempre verão, incomoda sempre. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que não incomodaria mesmo, e muito, caso não se associassem as cenas de furto aos moleques pretos despejados por ele na orla de Copacabana, Ipanema e Leblon. Isso porque são moleques e pretos.

É possível que, a partir do mês que vem, ele não passe da Candelária. É o que estuda fazer a prefeitura, sem perceber que o 474 é a cidade, e que nele se resumem suas potencialidades presentes e futuras. Impedi-lo de ir até a Zona Sul nada mais é, passageiros e passageiras, que assinar o nosso termo de fracasso e desistir da cidade. Um dia, teremos vergonha por não termos reagido a isso. Esse será mais um de nossos já muito numerosos traumas coletivos.

*****
Em tempo: acabo de  me lembrar que o prefeito andou projetando uma pista de esqui para o Parque Madureira, sob a justificativa de fazer o povo [sic], ao invés de Aspen, ir para o subúrbio, o que faria de nós uma cidade integrada, em sua própria perspectiva, é claro.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Pequena Biografia Sentimental de Ismael Silva

Quem nasce sem eira nem beira precisa estar atento para, no exato momento em que a brecha for dada - e sempre haverá ao menos uma brecha -, inventar-se e inventar um mundo para si mesmo num único golpe. Arte difícil essa, na qual Ismael Silva foi insuperável. Nascido preto e pobre, filho mais novo de uma prole órfã de pai, saiu de Jurujuba ainda criança para inventar o Estácio e, a partir de dele, uma cidade-mundo, abrigo dos seus.

Propriamente dito, jogar o joguinho - com a licença, seu João Antônio! - não sabia, não. Mas ainda assim jogou. Jogou porque precisava jogar. E jogou com símbolos, dando pernada em seus sentidos até que eles se tornassem ambíguos, móveis, e virassem a seu favor. Eis aí a sua malandragem, aprendida na rua, certamente, mas aplicada de maneira muito particular.

Ainda criança, invadiu e surrupiou a escola, confundindo o inimigo. Em pouco tempo, tomou-lhe o nome e fez-se ele mesmo professor. Mais do que isso: reivindicou o a autoridade do gesto, como quem soubesse do seu significado para além do superficial das criações. Quem inventou a escola de samba? "Fui eu!", dizia Ismael, e "deixa falar quem quiser, tem que respeitar", emendava logo em seguida.

Mas Ismael inventou mais que isso. Tornou-se maestro de uma orquestra composta de cuíca, surdo e tamborim, levando para a música toda uma nova experiência urbana cotidiana. Sabia, mais do que ninguém, que era preciso injetar cadência e marcação para que sua gente pudesse olhar para frente, de cabeça erguida, fingindo ingenuidade enquanto tomava a cidade de assalto. E assim, foi no Estácio que Rio de Janeiro se viu no espelho, sem maquiagem, pela primeira vez.

Não esteve à venda, mas vendeu muitos de seus samba. Vendeu não, foi profissional, que o jogo é jogado sempre. Com Francisco Alves, o Chico Viola, sua face visível, branca, aceitável, fez muita gente metida a besta pensar que era malandra. Fez o batuque subverter a civilização, ou antes fez a sua civilização adentrar o espaço de uma outra civilização que se pretendia a única possível. Com Noel Rosa, fez-se compositor respeitável. Nas rodas de intelectuais, fez-se moderno.

Sem eles, é verdade, a vida era difícil. Meteu-se em confusão. Talvez tivesse até matado se fosse preciso. Pegou cadeia. Deu a volta, não por cima, mas pela lateral. Morreu sozinho, numa pensão da Gomes Freire, aos setenta e três anos. Não guardou nada, que malandro que é malandro não tem tempo pra essas coisas, mas nos deixou de lambuja a arte da invenção, tão necessária nos dias que se vão.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Obrigado, Jackson!

Passou despercebido aqui no Rio o 31 de agosto último, aniversário do paraibano José Gomes da Silva que, acaso estivesse vivo, completaria 96 anos. Eu sei que tem muito Zé na Paraíba, e por isso serei imediatamente mais específico: falo daquele que gostava tanto de cinema americano que se rebatizou "Jack", passando logo a "Jackson". Sim, o "do Pandeiro"!

Esteja visto, portanto, que antes mesmo de misturar chiclete com banana, Jackson do Pandeiro já misturava forró com Hollywood e tudo mais que lhe desse na veneta. E foi com esse espírito que ele chegou ao Rio de Janeiro, quando corria o ano de 1954 e, todo mundo sabia, mas crer ninguém parecia, os dias do Rio de Janeiro como capital estavam contados. Por outro lado, aos olhos de hoje pode até parecer que ninguém sabia, mas já havia toda uma "bossa" no ar bem antes do surgimento da "bossa nova", gênero que, dali em diante, reivindicaria para si o pioneirismo e o monopólio de todo um jeito novo, um num sei quê temperado com sofisticado e juvenil otimismo musical.

Logo de início, Jackson do Pandeiro causou verdadeiro furor na cidade ao gravar cinco 78 rpm's, o primeiro dos quais com "Forró em Limoeiro" no lado A e "Sebastiana" no lado B. Há quem diga que, por sua habilidade para dividir melodias a torto e a direito, Jackson do Pandeiro abriu caminho para um jovem baiano chamado João Gilberto. Não acato nem desacato a ideia, mas lembro que, para início de conversa, antes seria preciso passar a bola para um tal de Wilson Baptista e um outro tal de Geraldo Pereira, para ficar com apenas dois poucos e bons exemplos.

Mas, na verdade, o que eu queria dizer é que o carioca deve a Jackson do Pandeiro uma das maiores sacaneadas que ele já sofreu, e pelo visto sem perceber. Estou falando de "A Ordem é Samba", lançada em 1966 no álbum não por acaso intitulado O Cabra da Peste. Ali o mestre do ritmo embola os conteúdos dos termos e denuncia de maneira sutil uma das maldições que recaem sobre a cidade: a do samba como prisão, digo, aquela que ganha as raias oficiais e oficiosas até engessar identidades e limitar experiências. Sendo assim, toda vez que um carioca desavisado enche o peito de orgulho para cantar que "No Rio de Janeiro todo mundo vai de samba/ a pedida é sempre samba [...]/Lá vai lá vou eu de samba/a ordem é samba e nada mais", Jackson dever dar uma risadinha esteja lá onde estiver. E por isso mesmo, obrigado, Jackson!

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Ainda há?





A matéria trazia um monte de dados estatísticos e descrições metodológicas, além de um clamor geral pela preservação ambiental dessa cidade que, não obstante chamada Rio, tem feito os seus de privada, inclusive o Carioca, para vocês verem o ponto a que chegamos. Mas o que me deixou mesmo embasbacado foi o título, que anunciava a identificação de uma área de vegetação nativa na Floresta da Tijuca que correspondia a algo como 42 mil Maracanãs.

Termino a leitura - "42 mil Maracanãs de floresta!" - e fico ainda um bom tempo pensando naquela associação - "Maracanã...Floresta, Floresta... Maracanã..." -, até que na curva do pensamento esbarro com o general. Melhor dizendo, lembro da Curva da Amendoeira e do general Ângelo Mendes de Morais.

Explico-me: foi sob a administração de Mendes de Morais (1947-1951), empossado por outro general, o Eurico Gaspar Dutra, numa época em que, por ser Distrito Federal, os prefeitos da cidade eram nomeados diretamente pelo presidente da república, que foi construído o estádio do Maracanã para a fatídica Copa do Mundo de 1950. A realização da obra era polêmica e entre os seus muitos opositores estava o então vereador Carlos Lacerda, de modo que a atuação de Mendes de Morais foi decisiva para que o projeto fosse levado adiante, e com apoio popular ainda por cima.

E a Curva da Amendoeira? Bem, a curva ainda está lá, entre Flamengo e Botafogo, no entroncamento da Avenida Oswaldo Cruz com a Rui Barbosa, cuidada de perto por  Cuauhtémoc, o imperador asteca cujo corpo tombou diante das tropas de Cortez, e cuja estátua por algum milagre não teve o mesmo fim diante das obras do Aterro do Flamengo. Mas se a curva continua, a Amendoeira não. Foi retirada dali a mando do mesmo Mendes de Morais, o entusiasta do Maracanã. A justificativa, se é que havia uma, eu confesso que não sei. E na verdade tive preguiça de pesquisar. Não importa. O fato é que, se na Floresta da Tijuca ainda há floresta, na Curva da Amendoeira já não há mais a imponente amendoeira que lhe deu nome e identidade. E por falar nisso - assim é o Rio de Janeiro -, perguntar não ofende: acaso ainda há Maracanã no Maracanã?

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Notas do subúrbio I



Cascadura

Colado na vidraça do cartório, o solitário bilhete manuscrito atrapalhava a comunicação visual entre público e funcionários.

Papel tosco, bastante amassado, como se tivesse sobrevivido a uma batalha qualquer, trazia em letras garrafais o lasso apelo:

"Favor não batucar no balcão".

Ninguém o assinava. Muito menos agradecia.

segunda-feira, 23 de março de 2015

O segredo que mora na Rua Sara



- Quer saber de uma coisa?!

E a velha, de olhos pequenos, me mostrava o cigarro de filtro amarelo que trazia na mãos de dedos curtos e pele enrugada. Como eu não respondesse, insistiu com sua voz rouca:

- Quer saber de uma coisa, meu filho?!
(Não, não queria, mas senti que seria inútil dizê-lo).

- Tem que ter muito cuidado pra acender cigarro dos outros, viu? O quê?! Tuberculose é foda... Passa até pelo tato! Olha aqui como eu faço...

E me mostrava o maço, que contava apenas dois cigarros virados de cabeça pra baixo, filtros protegidos. Ato contínuo, pedia para que eu ascendesse com o meu o cigarro dela, o que fiz sem demonstrar qualquer interesse pela recomendação.

- Vivi a vida toda aqui. Nasci aqui, praticamente. Conheço todo mundo aqui. (Fez uma pausa meio programada) E digo mais: todo mundo me respeita nessa porra! É...porque eu sou atrevida. Toda Cecília (chamava-se Cecília) é atrevida, hein!

Estava sozinha no bar. Em sua mesa, uma cerveja barata reinava só. Não me olhava propriamente nos olhos enquanto falava.

- Ó...(com um gesto chamou-me para mais perto, como quem fosse contar um segredo). Conhece Laranjeiras? Conhece a Rua Alice? Conhece a Casa Rosa?! Então, trabalhei lá por onze anos! Onze anos trabalhei lá! Tive três filhos: um com dezessete, outro com vinte e outro com quarenta e quatro. Quarenta e quatro! (aparentava muito mais). Conhece alguém assim?! Pois é! E meus filhos sabiam de tudo, que eu nunca escondi de ninguém, não! Descia e subia esse morro todo santo dia, debaixo de sol, debaixo de chuva. Agora tô aqui... Ih... puta que pariu... lá vem minha neta me pedir dinheiro! Primeiro de tudo diz boa noite pro moço!

Apresentou-me a criança. Foi a única vez que interagi com palavras:

- Boa noite.

Chovia. Um carro rompeu o silêncio da rua que parecia dormir.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Rubem Braga estava certo



Fui pego de surpresa quando liguei a TV em pleno domingo, dia do Senhor, e pude ver com meus próprios olhos a profecia se cumprir. Num primeiro momento, confesso que não consegui acreditar no que via. Mas logo lembrei do ignorado presságio do cronista - "Ai de ti, Copacabana!" - e constatei que o fim havia chegado: o fogo não veio, é verdade, mas a antiga Sacopenapã fora, enfim, invadida por um mar furioso e sedento de cada um de seus metros quadrados muito bem especulados.

Enquanto eu, da minha distante e pacata Praça Seca, assistia àquilo tudo e me sentia um peixe fora d'água, em plena Avenida Atlântica cardumes de toda espécie faziam a festa, mormente os "Verde-Amarelo-CBF", recém-saídos das varandas marítimas, muito embora no fundo, no fundo, o ritmo da maré fosse ditado mesmo pelos tubarões. E todos dançavam sem jeito e sem graça, mexendo as barbatanas conforme a música.

Só senti um alívio no peito e percebi que havia me ancorado na ilha certa quando Iemanjá, inquirida ao vivo por um repórter da Globo, disse com muita elegância que não tinha absolutamente nada a ver com aquilo. Que não metessem o nome dela naquela história. E que, muito pelo contrário, se dependesse dela a destruição de Copacabana aconteceria de cima pra baixo, ou melhor, morro abaixo.

De todo modo, foi triste constatar que Rubem Braga estava certo em suas tortas linhas. Pobre Copacabana! Felizmente que o apocalipse durou só um dia. Mas o pesadelo, parece, durará ainda um tanto, prato cheio para os psicanalistas do bairro, um dos quais já me disse que o grande desafio de seus pares vai ser descobrir em que momento seus moradores perderam a autoestima e passaram a imitar os da Avenida Paulista.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Olavo Bilac, o primeiro “ruim de roda” do Rio de Janeiro.*


           
Não havia regras de trânsito estabelecidas nem ruas apropriadas para o trânsito automotivo quando o líder abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) adquiriu, em 1897, o primeiro automóvel da cidade, um Gardner-Serpollet a vapor de 8 Hp. O automóvel era uma novidade, havendo pouquíssimos exemplares no país, e, por menor que fosse o trajeto, ele dependida basicamente do bom senso e da habilidade do próprio condutor, além, é claro, da sorte de que porventura estivesse ao seu lado como passageiro. 

Ainda no mesmo ano, cedendo aos apelos do amigo Olavo Bilac (1865-1918), um das figuras mais destacadas da poesia parnasiana no Brasil, José do Patrocínio resolveu emprestar seu carro para que o poeta pudesse experimentar a sensação de dirigir, mesmo não sendo habilitado. Mal sabiam eles que, por esse acaso, ficariam marcados na história como os protagonistas do primeiro acidente de automóvel de que se tem notícia na cidade. 

Como o modelo seguia padrões ingleses, Bilac, na época com trinta e dois anos, sentou-se a direita, no banco do motorista, e Patrocínio à esquerda, como carona. Depois de alguns quilômetros, o poeta perdeu o controle do veículo e, à velocidade de inacreditáveis 3 Km/h, acabou atingindo em cheio uma árvore na Estrada Velha da Tijuca. Saíram ilesos. Já o carro não teve a mesma sorte: partiu o tronco e caiu no barranco. Perda total. Desolado, mas poupando o amigo, Patrocínio teria praguejado aos céus e colocado a culpa nas péssimas ruas cariocas, verdadeiros obstáculos ao progresso da cidade.




*Texto originalmente publicado como Box no artigo de minha autoria intitulado "Muito antes dos 20 centavos". Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8. nº 96. setembro 2013. p.46

segunda-feira, 2 de março de 2015

Parabéns atrasado



Estrada da Cancela Preta, fronteira entre Bangu e Padre Miguel, Rio de Janeiro. Lá pelas tantas da Avenida Brasil, mais de 45 km de distância de Ipanema, metonímia da cidade-globeleza que, ao contrário da propaganda, não tem tantos 450 anos assim. A vista para a Serra do Mendanha garante o destaque para a natureza em meio aos poucos prédios construídos ao redor.

É de manhã, mas o calor é de fazer ferver água de coco. Na sala, quarenta e cinco adolescentes quase todos pretos ou quase brancos pobres como pretos, como diria Caetano, e eu, que, também preto, arrumo um pretexto para sair dela de dez em dez minutos, assim como eles. Mas a vida é escola, a escola ensina, e é preciso aprender. Recordemos então a lição, que há muito andava esquecida:

- João, meu camarada, quebra um galho pra mim?

E o gari, que já havia contado vantagem mais cedo por ter sido campeão no carnaval (desfilara na Estácio), além de ter arrumado uma grana com um barraquinha na Sapucaí, me responde com um sorriso de esgrimista que golpeia nas pequenas brechas que a vida dá: 

- Quem quebra galho é macaco gordo, professor! E eu sou levinho, levinho...

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Como manda a nossa marcha




"Acabou nosso carnaval", lembra a letra da marcha que ainda ecoa, viva, entre buzinas e fumaças nessa segunda-feira ensolarada. Os dias de intenso delírio e otimismo gratuito terminam e começam, e terminam como começam assim, sem fim algum.

"Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê, que nem se sorri, se beija e se abraça e sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor", lamenta a marcha. Sábia marcha que no entanto ainda se ergue da sarjeta para acenar a cada um dos componentes da alma lavada ao relento, os quais, sem perceber, acenam de volta e a cantam sem saber enquanto caminham sozinhos para o trabalho.

Não, não é preciso contar a ninguém a nossa experiência durante esses dias recém-passados...Todos os que se entreolham no dia de hoje, somos cúmplices de nós mesmos. É como se já soubéssemos e compartilhássemos intimamente o mesmo ar de compreensão. Cumprimentemo-nos a nosso modo, então, em segredo, em silêncio, sem culpa por ter apenas sido, e a troco de nada.

O colorido que resiste nas calçadas aos poucos cede lugar ao cinza do asfalto, é verdade, mas ainda está lá. O corpo, há pouco invencível, cede às cinzas e ao cansaço, mas ainda está aí. A vida caminha e se aproxima do seu contrário, mas, enquanto isso, ainda segue, muito embora pareça sem rumo.

O carnaval, caros(as) passageiros(as), só não acaba porque, propriamente dito, nunca começou. Seu tempo não pertence à história, mas à memória. Por isso é que ele vive no folião, ainda que este não o viva o tempo todo.

"E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade", insiste a marcha. Insistamos também e, em meio à máscaras mal encaradas e furiosas, vistamos a fantasia do cotidiano rumo ao que der e vier, "pra ver e brincar outros carnavais, que marchas tão lindas, e o povo cantando seu canto de paz", como manda a nossa marcha.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A cabrocha e a galinha


Até o início do século passado, o Centro do Rio de Janeiro concentrava a maior parte da população carioca, de modo que a distinção pública entre os mais ricos e os mais pobres se dava menos pela ocupação espacial que pela vestimenta e pelo tipo de habitação. Enquanto os primeiros habitavam os casarões e vestiam-se à lá França, os segundos moravam em habitações coletivas ou nas favelas e vestiam-se com o que dava.

Mas, na medida em que a cidade foi crescendo e se expandindo, as desigualdades sociais foram ficando cada vez mais marcadas espacialmente a partir dos pólos Zona Norte e Zona Sul, de modo que já na década de 1940, as diferenças entre esses dois Rios já era nítida.

Os bairros à beira-mar - Copacabana à frente -, beneficiados por uma série de melhoramentos promovidos por Cabrão e sua turma, despontavam como o lugar do novo - e rico - moderno.

A garota de Ipanema, muito antes de Tom e Vinícius, já era um tipo conhecido nos bondes que circulavam por aquelas bandas e que traziam "as mais lindas cabrochas do Rio", como diz a letra da marchinha "Lá vem o Ipanema", de Roberto Roberti e Marina Batista, gravado por Déo para a folia de 1948:

Lá vem o Ipanema, o bonde que nunca viaja sozinho
Lá vem o Ipanema, trazendo as mais lindas cabrochas do Rio
Quando ele entra triunfal no tabuleiro
Meu coração vibra mais forte que um pandeiro
É ele quem resolve meu problema
Trazendo Isabel, trazendo Marina, trazendo Iracema (https://www.youtube.com/watch?v=G_99QOAA2SQ)

Já nos bondes do outro lado da cidade, onde o estilo de vida (sub)urbano mal se distinguia completamente do rural, o ambiente não era assim tão propício ao flerte, pois seus passageiros tinham outras preocupações, como disputar espaço, no banco ou no estribo, com galinhas e outro animais, vide a "Tem galinha no bonde", de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, gravada por Araci de Almeida para o Carnaval de 1942:

Tem galinha no bonde
Tem, tem, que eu vi
Galinha no bonde é abacaxi!
Pára, pára, desce, desce!
Salta, tem que saltar!
Galinha e outros bichos
Não podem viajar
Daqui a pouco o Juca
Traz o galo garnizé
Isso até tá parecendo
A Arca de Noé!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A tristeza da alegria e a alegria da tristeza



Estão errados aqueles que pensam que a folia de Momo é só alegria barata e superficial. Não, senhor(a)! Para o carioca, carnaval é coisa séria e carrega consigo os paradoxos da vida também. O folião legítimo, reparem bem caríssimos(as) passageiros(as), oscila entre aquele(a) que é feliz de tão triste e o que é triste de tão feliz, muito embora a diferença entre um e outro prato da balança não seja lá muito clara. Daí os muitos sambas e marchinhas que trazem como motivo o revanchismo, a resignação ou a espera do (re)encontro com os trilhos certos da própria vida.

Tão (in)esperados quanto fugidios, os (des)encontros amorosos, por exemplo, tiveram lugar garantido carnavais entre as décadas de 1920 e 1960, mesmo que fosse em pé, no estribo no bonde, lugar que, por sempre caber mais um, é comparado ao coração de uma pequena ou de um rapazola sem coração algum na marchinha "Endereço Errado", de Paulo de Carvalho, gravada por Carmem Miranda para o carnaval de 1938:

Amor eu sei que você não tem não
Mas isso não faz mal algum
Seu coraçãozinho é um estribo de bonde
que tem sempre lugar p'rá um
(https://www.youtube.com/watch?v=ia8K7MNoNjU)

Tem também a "Pára o bonde", de Antônio de Almeida, sucesso na voz de Vassourinha, no carnaval de 1942. Aqui, vemos um distraído sujeito que pega o bonde errado e, assim mesmo, vai até o fim da linha para pensar nas próprias mágoas:

Quando eu pego o bonde errado
Vou até o fim da linha
E pra disfarçar as mágoas
Vou tocando a campainha
Outro dia eu distraí
Passeando com meu bem
Peguei o Estrada de Ferro
Pensando que fosse trem

Já o belíssimo samba "E o 56 não veio...", de Wilson Batista, gravado em 1944, narra a tristeza do camarada que espera uma hora (!) a amada no ponto do bonde apelidado justamente - vejam vocês! - de Alegria, linha de número 56 que partia da praça XV em direção a Rua Licínio Cardoso (São Francisco Xavier), passando pela Rua da Alegria (Caju). Dado o traçado do bonde, é de se imaginar que a pequena, se era humilde, de boba não tinha nada. Na certa, preferiu os mistérios e os flertes da cidade ao convencional namorinho no portão:

Eu ontem esperei ás 7 em ponto
Ainda dei uma hora de desconto
Os ponteiros do relógio pareciam me dizer
"Vai embora meu amigo ela não vai aparecer"
Será que ela não veio porque se zangou?
Ou o bonde Alegria descarrilou?
Houve qualquer coisa de anormal
Ela sempre foi pra mim tão pontual
Fui ao chefe da Light, perguntei ao inspetor
"O que houve com o 56? Esse bonde sempre trouxe o meu amor".




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Não pago o bonde!

Se ao longo do ano os bondes  eram os principais parceiros do carioca, durante o carnaval então, nem se fala! Sua função era dupla: por um lado, eram eles que levavam a moçada para a folia que, na verdade, já começava mesmo em seu interior, infernizando a vida do condutor e do motorneiro; por outro, e não menos importante, serviam de mote para as próprias marchinhas e sambas que animavam a festa de Momo.

Em ambos os casos, a figura do condutor era de longe a mais esculhambada, e por um motivo muito simples: o carnaval, parênteses da vida cotidiana, era o momento propício para tirar onda com a cara daquele que durante o ano inteiro cobrava o dinheiro da passagem, cujo preço é discutível não é de hoje.

Humilde funcionário da Light, empresa que detinha o monopólio dos bondes elétricos, o "conduta", pobre coitado, era visto com desconfiança e muitas vezes foi acusado de cobrar mais do que devia, como nesse samba de A. Neto, Aldacir Louro e Rubens Fausto, intitulado O Conduta do Taioba, que animou o carnaval de 1955:

O conduta deste taioba,
Diz que é honesto quando cobra,
Mas toda vez que faz tim... tim...
Logo vai dizendo, dois pra Light e um pra mim.
Ele anda pendurado o ano inteiro.
É muito vivo e não tem nada de otário,
Fazendo tim... tim...
Fazendo tim... tim...
Este conduta acaba milionário.

Também brincalhona, porém muito mais desafiadora, era a marcha Não pago o bonde, de J. Cascata e Leonel Azevedo, sucesso no carnaval de 1938 na voz de Odete Amaral. Nela, o esperto passageiro aproveita a ocasião da festa para transformar malandramente o condutor em "camarada", e a empresa responsável pelo transporte, no verdadeiro e acertado alvo do protesto.

Fica a dica para o carnaval desse ano!

Não pago o bonde, iaiá
Não pago o bonde, ioiô
Não pago o bonde
Que eu conheço o condutor
Quando estou na brincadeira
Não pago o bonde
Nem que seja "por favor"

Não pago o bonde
Porque não posso pagar
O meu é muito pouco
E não chega pra gastar
Moro na rua das casas
Daquele lado de lá
Tem uma porta e uma janela
Mande a Light me cobrar!

Segue o link para quem quiser ouvir essa belezura: https://www.youtube.com/watch?v=GtBYW-2jfRA

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O dia em que Roma invadiu o subúrbio

"Vamos à História dos subúrbios". A frase machadiana encerra o Dom Casmurro e inicia a nossa viagem de hoje.

O ano era 1938. Naquele tempo, ninguém mais duvidava que o caldo que há muito vinha cozinhando o hemisfério norte estava prestes a entornar pra cima do mundo inteiro. Articuladas, as forças do Eixo (Berlim-Roma-Tóquio) avançavam e ciscavam no terreiro alheio sem pestanejar, dando demonstração de seu poderio militar por onde quer que passassem.

No Brasil, as notícias sobre o xabu euro-asiático chegavam a conta-gotas, pelos jornais ou pelas ondas do rádio, até que, no dia 26 de janeiro, a Esquadrilha Italiana dos Ratos Verdes cruzou o céu carioca e pousou às 18:56 na base aérea do Campo dos Afonsos,  Zona Oeste do Rio de janeiro. O subúrbio, vejam vocês, foi a nossa primeira testemunha de que a guerra se aproximava, literalmente!

A desculpa para viagem, muito esfarrapada por sinal, era um estudo de viabilidade para uma nova rota comercial entre  a Itália e o Brasil. Mas a missão, pelo menos a princípio, era mesmo de paz, pois Vargas ainda flertava com o país que dali a alguns anos seria nosso inimigo de muitas batalhas.

Vindos diretamente de Roma, com uma pequena escala em Dacar, capital do Senegal, os Ratos Verdes, que tinham esse nome por causa dos três ratinhos de pé que estampavam as latarias dos aviões, quebraram o recorde de velocidade na travessia do Atlântico Sul, o que embasbacou muita gente boa e empolgou muito patriota abobalhado.

A esquadrilha era composta por três aviões, dos quais apenas dois chegaram ao seu destino final - um ficara em Natal para reabastecer. Entre os pilotos, estava um jovem tenente chamado Bruno Mussolini, segundo filho do Duce, que contava com apenas vinte anos de idade.

Mussolini, o pai, deve ter ficado orgulhoso. Já o filho foi recebido aqui com todas as honras e protocolos oficiais. Mas, como não era bobo nem nada, tocou pra Copacabana na mesma hora, tão logo acabaram as sessões de fotos para os jornais. No caminho, fora alguns curiosos, ninguém deu muita bola pra ele. Até porque, o carnaval já se aproximava, e na folia todo mundo é filho do rei.        

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Santo e a Angel

[Subiu no Taioba, mal deu bom dia ao condutor, sentou-se ao lado dela e sem demora começou a falar.]

- Obrigado por ter vindo. Sei que, apesar de suas seguidas investidas, nunca trocamos qualquer palavra antes. Não me leve a mal. Outro dia, com calma, podemos colocar tudo isso em pratos limpos, se você assim desejar. De todo modo, espero não estar sendo invasivo, mas é que de onde venho não temos o costume de questionar o porquê das coisas, elas simplesmente irrompem e pronto.

Bem, vou direto ao ponto. O motivo da minha aparição, assim, de supetão, você deve imaginar qual é, e me desculpe a franqueza, mas fiquei muito injuriado com seu rompante de madame da semana passada. Que foi aquilo, Hild?! Ora, então eu trabalho duro o ano todo pra você me vir com uma dessas?! De novo esse papo de segregar para resolver o "caos" da Zona Sul, meu Deus do céu?! Agora fica todo mundo aí, te achincalhando pelo tal de Facebook - que, aliás, vou te contar também hein...

Sabe, Hild, minha breve experiência na Terra não foi lá das melhores. E é só por isso que eu não te rogo um "bem feito"! Tenho cá minhas convicções, você deve saber... Pois é, e por não abrir mão delas, principalmente por acreditar que os povos podem deixar suas diferenças de lado e conviverem numa boa, fui condenado à morte por flechadas. Como não morri de imediato, me deram tanta bordoada, Hild, mas tanta, que não resisti. Jogaram meu corpo no rio...

Por isso, quando batizaram essa cidade com meu santo nome, fiquei... fiquei puto, Hild, a verdade é essa - que Deus não me ouça! Cheguei a dar entrada em processo celeste pra desfazer a encrenca. Lembro de protestar aos berros: "Que história é essa dos portugueses associarem logo a minha imagem à vitória na guerra contra os franceses e os tupinambá? O que eu tenho a ver com isso, meu Deus?!" De nada adiantou.

Mas aí, tempo vai, tempo vem... acabei me afeiçoando por essa gente. Sabe como é santo, né. E de mais a mais, descobri, afinal, que o que me liga a essa cidade é justamente esse estigma da violência que eu tenho que desfazer todo santo dia, que nem Sísifo. Você nem imagina o dobrado que eu tenho que cortar aqui no Rio, Hild... Tanto, que, para dar conta do recado, recorro a ajuda de São Jorge, que, malandro, acaba levando a fama só por gostar mais de rua do que eu. Tudo bem, não me importo. Faço o que está ao meu alcance, e até prefiro atuar nos bastidores...

Só não me venham com esse papo de que santo de casa não faz milagres! Claro que não posso evitar muita coisa, né. Também, não sou Deus. E mesmo que fosse, tem esse negócio todo aí de livre arbítrio, e coisa e tal. Caso contrário você acha que o velho Cabrão estaria aí no poder por tanto tempo?! Nem ele nem o Padilha, minha filha! Infelizmente isso aí não é comigo, senão... Mas, olha, não é pra me gabar, não, Hild, já desfiz muros por aí que muitos julgavam inabaláveis. Um dia você vai me agradecer, Hild, por essa praia lotada de gente da Zona Norte, da Baixada, das favelas... você vai ver. Tem muito ricaço aí que me agradece até hoje pelo samba ter sobrevivido, Hild... Ora, se não é essa gente a te cutucar a vida mansa, você nunca sairia dessa redoma, minha filha. E tem mais...

[Emocionada, Hildegard não se conteve. As lágrimas caíram. Sem conseguir dizer nada, interrompeu São Sebastião, pediu-lhe a benção e desceu numa esquina do Leblon. Dizem que foi vista tempo depois tomando sol, em meio a multidão, de maiô importado. Cantarolava, um tanto envergonhada, alguma coisa do Cartola, parece.]

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O diabo miudinho que habita o rio Trapicheiros





No dia 6 de janeiro de 1907, à Rua Luís Barbosa, 42, lá pelas bandas de Vila Isabel, nascia Marques Rebelo, um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. O feito, é fato, não é reconhecido pelos órgãos oficiais e, por isso mesmo, não consta entre as tão esperadas comemorações dos 450 anos da cidade. Não importa. Sua obra é de outro tipo, muito mais sutil, e torna-se ainda mais especial na medida em que Rebelo não contou com ajuda senão de um único fiel escudeiro: Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias, nada mais nada menos que a pedra fundamental dessa cidade do Rio de Janeiro. Sim, porque uma coisa é o espaço construído, outra coisa, bastante diversa, é a imagem e a experiência que lhe dão vida. E é disso que trato aqui. A cidade fundada por Marques Rebelo é  aquela com a qual nos identificamos a partir das experiências formadas nas práticas e usos da urbe.

A edificação não se deu numa tacada só, está visto. Ao contrário, foi processo lento e gradual, e que levou praticamente uma vida inteira. Para tanto, Rebelo precisou utilizar os mais diversos materiais, que incluíam contos - Oscarina (1931), Três Caminhos (1933) e Stela me abriu a porta (1942) -, romances - Marafa (1935), A Estrela Sobe (1939) e a trilogia autobiográfica O Espelho Partido (1959, 1962, 1968) - uma novela O simples coronel Madureira (1967), crônicas, vinhetas e outros que tais, além do impagável Guia antiturístico do Rio de Janeiro (2007), com ilustrações do Jaguar.

Para quem ainda não conhece Rebelo, favor não cair na esparrela de procurá-lo nos manuais de história da literatura brasileira, nem em suas páginas uma obra-prima. Afinal, quem ainda precisa delas? Não, Rebelo não é desses e nem é preciso cobrá-lo por isso. Seu lugar é outro, próprio, singular e um tanto solitário. Acompanham-no mais ou menos de perto os cronistas esportivos e os sambistas anônimos em sua capacidade sem-igual para tratar com lirismo os trancos e barrancos do dia-a-dia não do Carioca, mas de malandros, prostitutas, donas de casa, normalistas, baixos funcionários públicos, boxeadores amadores, militares de baixa patente, etc.

Um carioca em especial, cujo esboço é extraído de uma massa anônima, pertencente a um entre-lugar em meio a cidade da burguesia moderna e vencedora - Copacabana à frente - e a cidade dos excluídos, isto é, as favelas e os subúrbios mais longínquos, surge em sua narrativa cambaleante. E do amortecido movimento nas fronteiras desses Rios surgem os dramas pessoais de suas personagens, para as quais esse vaivém é a própria vida, única possível e captada enquanto vive, onde se encontram num amálgama sem síntese, fragmentado, aberto e inacabado. O Rio de Rebelo é intemporal.

Franzino, cabelo à militar, óculos de armação escura, espírito zombeteiro e língua afiada, embora nem sempre certeira ou justa, torcedor do América, ele próprio um "diabo miudinho" - como certa vez o chamara Carlos Drummond de Andrade -, Rebelo não era descendente dos Sá nem travou batalha contra os franceses. Aliás, o Rio de Janeiro de Marques Rebelo não se localiza às margens heroicas da Baía de Guanabara, nem tampouco partiu de lá para ganhar terreno em direção ao interior. Sua vocação é correr no sentido contrário, do interior em direção ao mar e de lá para o mundo seguindo o curso do rio Trapicheiros - nos arredores do Largo da Segunda Feira, onde viveu a maior parte de sua juventude - cujas águas, a despeito de terem se tornado praticamente invisíveis por conta de sucessivas e irreversíveis exigências modernizadoras, ainda estão lá.

           
           

           


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tome lugar no bonde


Em tempos de guerra declarada ao transporte público, é inevitável olhar com nostalgia para um simpático personagem que figurou honrosamente pelas ruas cariocas desde a segunda metade do século XIX, quando o Rio de Janeiro ainda carregava o pomposo - e um tanto desconfortável - título de Corte imperial. Aliás, suas histórias - a do bonde e a da cidade - são praticamente indissociáveis a partir de então.

O carioca deve ao bonde o germe da conformação espacial e social da Sebastianópolis de hoje. Foi ele, por exemplo, o pioneiro no desbravamento de Copacabana, quando o bairro que se tornaria ícone do Rio moderno nos anos 1930 não passava de um esfíngico areal. Nele apinharam-se pessoas de origem e cultura diversas, que passaram a compartilhar entre si - mesmo que em alguns casos a muito contragosto - breves momentos de seu dia-a-dia.

E não pára por aí. Devemos ao bonde muito mais, pois, em meio às sendas que abriram e aos tantos destinos que traçaram, eles teceram também o próprio o imaginário urbano carioca ao renderem as nossas mais saborosas historietas, tornando-se indispensáveis na literatura e, posteriormente, nas canções que, inspiradas no cotidiano do Rio, ganhariam o Brasil pelas ondas do rádio.

Como é sabido, porém, a modernidade devora impiedosamente seus filhos e com o bonde não foi diferente. Ultrapassado pelos ônibus e carros, o bonde ficou pra trás e consigo ficou parte de uma cidade que hoje se faz presente apenas na memória, esse mata-borrão do tempo que entrelaça a seu modo, e de tempos em tempos, o passado e o presente.

Alguém poderá objetar e citar o bonde de Santa Teresa, este gigante ambiguamente chamado de "bondinho", como o nosso bravo resistente de outrora, apesar das pesadas investidas do velho Cabrão para desligar-lhe os últimos aparelhos. Mas o que pouca gente sabe é que, nas curvas dessa viagem do tempo, há outro bonde que, surgido há 130 anos, ainda circula pela encantadora alma das ruas do Rio de Janeiro: o "caradura", ou "taioba" para os íntimos. Por apenas um tostão, metade do preço da passagem comum, o taioba, que antes levava aqueles que, sem dispor de grana para pagar a passagem regular, trabalhavam como ambulantes ou operários nas fábricas de tecido da Zona Sul (Laranjeiras, Gávea, Jardim Botânico), hoje anda por aí à disposição de qualquer um que deseje se deixar levar por ele. E sem cobrar nada.

Para identificá-lo, há que se apegar menos às características que o distinguiam dos demais, sobretudo a injusta inscrição "segunda classe" que durante muito tempo foi obrigado exibir - eis aqui mais uma das peripécias do velho Cabrão - em suas laterais para classificar seus passageiros. Mais importante é lembrar de sua generosidade a toda prova, pois além de não exigir qualquer formalidade - diz-se que nos áureos tempos subia-se nele mesmo descalço ou sem-colarinho -, o taioba é o único bonde a carregar sem reclamar as pequenas cargas pertencentes a quem nele viaja.

Prezado passageiro, prezada passageira, o Taioba do qual doravante me faço condutor não leva senão gente e coisas pelos trilhos cotidianos de uma cidade imaginada pela qual circula seguindo os de tantas outras de tantos outros. E como já é hora de partir, sigo adiante e despeço-me sem mais delongas com mestre Aldir Blanc. Até a próxima viagem.

"Tome lugar bonde
Não peça que ande
Nem diga por onde seguir
Lembre que só depois
Quando chegar ao fim
Mesmo sem brilho e sem glória haverá sua história, contada assim". ("O bonde" - Aldir Blanc)