sábado, 25 de junho de 2016

Quatro motivos para não chamar o VLT Rio de "bonde moderno"



  1. O VLT Rio não é moderno. Modernização técnica e demão de design sofisticado não necessariamente tornam moderno um equipamento. O moderno deve estar em pleno diálogo com as marcas, os anseios e, no caso de um meio de transporte, as necessidades do atual. Do contrário, a forma anuncia apenas um conteúdo vazio. É o que acontece com as linhas projetadas para o VLT Rio: fazem parte de uma modernização da cidade ditada pelo capital, mas não são propriamente modernas, posto que não correspondem às atuais necessidades da cidade. Moderno mesmo continua sendo o bom e velho bondinho de Santa Teresa;
  2. O VLT Rio não é o bonde. O modal pode ser o mesmo, mas há uma distância fundamental entre um e outro. O bonde foi o principal meio de transporte do carioca até pelo menos a década de 1940. É bem verdade que ele serviu aos especuladores e enriqueceu ainda mais os cofres da Light. Mas, por outro lado, atravessava praticamente todos os bairros e classes da cidade. Para o "Ciroula", bonde gourmet que levava os bacanas para o Teatro Municipal, havia o "Taioba", bonde que pela metade do preço geral transportava os mais humildes trabalhadores com todas as suas bugigangas. Já o VLT Rio não foi projetado com essa finalidade. Na verdade, ele faz parte de um vitorioso projeto de precarização do transporte, o mesmo que retirou os bondes das ruas sob o argumento de que ele era lento demais. A propósito, o VLT Rio circula, em média, a 15 km/h.
  3. O VLT Rio não foi batizado. Tem gente dizendo que o VLT Rio foi vandalizado recentemente pelos professores grevistas, que colaram centenas de adesivos em sua lataria. Se o VLT se ofender com isso, francamente, não o chamem de bonde moderno em hipótese alguma! O bonde foi absolutamente depredado em várias revoltas na cidade, entre as quais destacam-se a do Vintém (1879), a primeira a ir contra os sempre abusivos preços do transporte público, e a da Vacina (1904), que enfrentou sem vacilar a autoritária higienização da cidade de Passos.  E assim entrou para a nossa história. Para ser o "bonde moderno", o VLT Rio, do Paes, também precisará encarar de frente os seus batismos, que certamente virão;
  4. O VLT Rio não dá samba. Falta ao VLT Rio ser apropriado pelo carioca em seu cotidiano. Dito de outra maneira, falta ser mais que um simples meio de transporte e ascender ao imaginário da cidade. E, nesse quesito, o bonde é incomparável. Pensemos em expressões como "pegar o bonde andando" e mesmo no sem número de bondes que dão nome aos conjuntos de funk da cidade. Pensemos também que o bonde serviu de mote principal para os escritores cariocas, das crônicas de passeio do século XIX ao lirismo pessimista de Marques Rebelo dos anos 1930/40. Ou mesmo nos sambas de Noel Rosa e Wilson Baptista, que eternizou o Ipanema, "o bonde que nunca viaja vazio",  o 56, "o bonde que sempre trouxe meu amor" e o São Januário, o bonde que "leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar". Trocando em miúdos, o VLT não dá crônica. E muito menos samba;

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Bela, recatada e do lar ou a imagem feminina do Rio de Janeiro


Foi Ruy Castro quem disse, provavelmente citando outro autor do qual já não me lembro, que no mundo há apenas duas categorias de cidade: as masculinas e as femininas. No primeiro caso, por sua sisudez, seriedade e inclinação para o trabalho, estariam cidades como São Paulo e Nova Iorque, por exemplo. Já no segundo, por seu charme, leveza e sedução, estariam Paris e, é claro, o Rio de Janeiro. A primeira conclusão é simples: os grandes autores também têm lá os seus dias ruins.

É verdade que essa imagem do feminino ligada ao Rio de Janeiro não foi desposada – se me permitem a brincadeira – por Ruy. Muita gente boa embarcou nessa antes dele. Vinícius de Moraes que o diga. A Garota de Ipanema é, na verdade, menos uma musa inspiradora personificada pela Helô Pinheiro do que uma alegoria da cidade, essa cidade-mulher passiva, feita para o deleite masculino.

Cidade-mulher, aliás, é o titulo de um curioso livro de crônicas do talentoso e esquecido cronista Álvaro Moreyra, publicado nos anos 1920. Aos leitores, Moreyra explicava sua escolha logo na primeira crônica:

“- Cidade-Mulher? Não Entendi.
- Por isso mesmo”.

Quer-se dizer: o que está em jogo aqui é aquela ideia, do mistério, do ser intransponível, da dissmulação, da Capitu, enfim, com seus olhos de ressaca.

Aqui entra a segunda conclusão, não tão óbvia assim: a personagem machadiana é mais que uma imagem idílica e passiva da cidade. Machado, em sua malandragem da dialética, coloca o discurso do narrador à prova. Bentinho é um advogado que atua em causa própria, afinal. E, no Brasil de hoje, e no caso do Rio de Janeiro em especial, é bom mesmo desconfiar dessas duas figuras: narrador e advogado atuam quase sempre em causa própria.

Talvez então a chave mais rica para se pensar a imagem feminina do Rio esteja em outras personagens, aquelas que, na ficção ou na vida real, desconcertam os discursos prontos e a narrativas totalizantes.

Essa potência está na sua capacidade de diálogo com e na rua, onde Vidinha, das Memórias de um sargento de milícias, cantava seus lundus e fazia sua patuscada a despeito da perseguição do inquisidor major Vidigal.

Vidinha é patrona de Oscarina, de Marques Rebelo, mas também das escravas que, explorando as brechas do cotidiano, circulavam pela cidade muito antes de suas senhoras, que só sairão de casa no início do século XX. E mesmo dessas: quem não lembra do pavor provocado pelas melindrosas e suas saias e cabelos curtos, seus cigarros e suas sessões de cinema de-sa-com-pa-nha-das?!

Vidinha se multiplicou: nas polacas da região portuária, em Madame Satã ou nas putas expulsas para a Vila Mimosa que, não obstante, fazem valer sua memória no edifício da prefeitura: o "piranhão".

Nas Tias da Pequena África, que fizeram o Rio ser o que é: negro, plural, prenhe de saberes e sabores. Em Chiquinha Gonzaga e Nair de Tefé, primeira dama da primeira república, mas também primeira caricaturista e caricaturista de primeira, que trouxe o corta-jaca (!) pruma cerimônia oficial no Palácio do Catete. Em Carmem Miranda e Aracy de Almeida, a rainha do Encantado. Vidinha está em Elza Soares!

A terceira conclusão, portanto, é: bela, recatada e do lar, o Rio nunca foi ou será!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Marcha Crônica de um Carnaval Carioca Qualquer


-Vou beijar-te agora, não me leve a mal. Hoje é Carnaval!
- O galo tem saudade da galinha carijó...
- Nós vamos brincar separados?
- É o teu castigo! Brigou comigo sem ter porquê.
- Bandeira branca, amor... Não posso mais...
- Caramba, carambola... Sou do samba, não me amola!
- Mamãe... eu quero!
- Sen-sa-ci-o-nal...
- Não vai dar?! Não vai dar não?! Você vai ver uma grande confusão!
- Pierrô cacete! Vai tomar sorvete com o Arlequim!
- Foi Deus quem te fez formosa... porém esse mundo te tornou presunçosa. Presunçosa!
- Tem nego bebo aí, tem nego bebo aí...
- Eu bebo sem compromisso. Com meu dinheiro. Ninguém tem nada com isso!
- Olha o bafo da onça que...
- Se você fosse sincera...
- A pipa do vovô não sobe mais...
- Taí! Eu fiz tudo pra você gostar de mim...
- Ô abre alas, que eu quero passar...Ô abre alas, que eu quero passar...