quarta-feira, 20 de abril de 2016

Bela, recatada e do lar ou a imagem feminina do Rio de Janeiro


Foi Ruy Castro quem disse, provavelmente citando outro autor do qual já não me lembro, que no mundo há apenas duas categorias de cidade: as masculinas e as femininas. No primeiro caso, por sua sisudez, seriedade e inclinação para o trabalho, estariam cidades como São Paulo e Nova Iorque, por exemplo. Já no segundo, por seu charme, leveza e sedução, estariam Paris e, é claro, o Rio de Janeiro. A primeira conclusão é simples: os grandes autores também têm lá os seus dias ruins.

É verdade que essa imagem do feminino ligada ao Rio de Janeiro não foi desposada – se me permitem a brincadeira – por Ruy. Muita gente boa embarcou nessa antes dele. Vinícius de Moraes que o diga. A Garota de Ipanema é, na verdade, menos uma musa inspiradora personificada pela Helô Pinheiro do que uma alegoria da cidade, essa cidade-mulher passiva, feita para o deleite masculino.

Cidade-mulher, aliás, é o titulo de um curioso livro de crônicas do talentoso e esquecido cronista Álvaro Moreyra, publicado nos anos 1920. Aos leitores, Moreyra explicava sua escolha logo na primeira crônica:

“- Cidade-Mulher? Não Entendi.
- Por isso mesmo”.

Quer-se dizer: o que está em jogo aqui é aquela ideia, do mistério, do ser intransponível, da dissmulação, da Capitu, enfim, com seus olhos de ressaca.

Aqui entra a segunda conclusão, não tão óbvia assim: a personagem machadiana é mais que uma imagem idílica e passiva da cidade. Machado, em sua malandragem da dialética, coloca o discurso do narrador à prova. Bentinho é um advogado que atua em causa própria, afinal. E, no Brasil de hoje, e no caso do Rio de Janeiro em especial, é bom mesmo desconfiar dessas duas figuras: narrador e advogado atuam quase sempre em causa própria.

Talvez então a chave mais rica para se pensar a imagem feminina do Rio esteja em outras personagens, aquelas que, na ficção ou na vida real, desconcertam os discursos prontos e a narrativas totalizantes.

Essa potência está na sua capacidade de diálogo com e na rua, onde Vidinha, das Memórias de um sargento de milícias, cantava seus lundus e fazia sua patuscada a despeito da perseguição do inquisidor major Vidigal.

Vidinha é patrona de Oscarina, de Marques Rebelo, mas também das escravas que, explorando as brechas do cotidiano, circulavam pela cidade muito antes de suas senhoras, que só sairão de casa no início do século XX. E mesmo dessas: quem não lembra do pavor provocado pelas melindrosas e suas saias e cabelos curtos, seus cigarros e suas sessões de cinema de-sa-com-pa-nha-das?!

Vidinha se multiplicou: nas polacas da região portuária, em Madame Satã ou nas putas expulsas para a Vila Mimosa que, não obstante, fazem valer sua memória no edifício da prefeitura: o "piranhão".

Nas Tias da Pequena África, que fizeram o Rio ser o que é: negro, plural, prenhe de saberes e sabores. Em Chiquinha Gonzaga e Nair de Tefé, primeira dama da primeira república, mas também primeira caricaturista e caricaturista de primeira, que trouxe o corta-jaca (!) pruma cerimônia oficial no Palácio do Catete. Em Carmem Miranda e Aracy de Almeida, a rainha do Encantado. Vidinha está em Elza Soares!

A terceira conclusão, portanto, é: bela, recatada e do lar, o Rio nunca foi ou será!

3 comentários:

  1. Excelente texto!Intertextualidades que dão conta do aspecto histórico- literário da mulher.
    Parabéns.

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    1. Obrigado! Fico feliz que tenha gostado. Volte sempre. Bjo

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  2. Interessante esta mistura de escritores, cidades e sexualidade.
    Fica pensando quais cidades teriam outros sexos, além de masculino ou feminino.

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