segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tome lugar no bonde


Em tempos de guerra declarada ao transporte público, é inevitável olhar com nostalgia para um simpático personagem que figurou honrosamente pelas ruas cariocas desde a segunda metade do século XIX, quando o Rio de Janeiro ainda carregava o pomposo - e um tanto desconfortável - título de Corte imperial. Aliás, suas histórias - a do bonde e a da cidade - são praticamente indissociáveis a partir de então.

O carioca deve ao bonde o germe da conformação espacial e social da Sebastianópolis de hoje. Foi ele, por exemplo, o pioneiro no desbravamento de Copacabana, quando o bairro que se tornaria ícone do Rio moderno nos anos 1930 não passava de um esfíngico areal. Nele apinharam-se pessoas de origem e cultura diversas, que passaram a compartilhar entre si - mesmo que em alguns casos a muito contragosto - breves momentos de seu dia-a-dia.

E não pára por aí. Devemos ao bonde muito mais, pois, em meio às sendas que abriram e aos tantos destinos que traçaram, eles teceram também o próprio o imaginário urbano carioca ao renderem as nossas mais saborosas historietas, tornando-se indispensáveis na literatura e, posteriormente, nas canções que, inspiradas no cotidiano do Rio, ganhariam o Brasil pelas ondas do rádio.

Como é sabido, porém, a modernidade devora impiedosamente seus filhos e com o bonde não foi diferente. Ultrapassado pelos ônibus e carros, o bonde ficou pra trás e consigo ficou parte de uma cidade que hoje se faz presente apenas na memória, esse mata-borrão do tempo que entrelaça a seu modo, e de tempos em tempos, o passado e o presente.

Alguém poderá objetar e citar o bonde de Santa Teresa, este gigante ambiguamente chamado de "bondinho", como o nosso bravo resistente de outrora, apesar das pesadas investidas do velho Cabrão para desligar-lhe os últimos aparelhos. Mas o que pouca gente sabe é que, nas curvas dessa viagem do tempo, há outro bonde que, surgido há 130 anos, ainda circula pela encantadora alma das ruas do Rio de Janeiro: o "caradura", ou "taioba" para os íntimos. Por apenas um tostão, metade do preço da passagem comum, o taioba, que antes levava aqueles que, sem dispor de grana para pagar a passagem regular, trabalhavam como ambulantes ou operários nas fábricas de tecido da Zona Sul (Laranjeiras, Gávea, Jardim Botânico), hoje anda por aí à disposição de qualquer um que deseje se deixar levar por ele. E sem cobrar nada.

Para identificá-lo, há que se apegar menos às características que o distinguiam dos demais, sobretudo a injusta inscrição "segunda classe" que durante muito tempo foi obrigado exibir - eis aqui mais uma das peripécias do velho Cabrão - em suas laterais para classificar seus passageiros. Mais importante é lembrar de sua generosidade a toda prova, pois além de não exigir qualquer formalidade - diz-se que nos áureos tempos subia-se nele mesmo descalço ou sem-colarinho -, o taioba é o único bonde a carregar sem reclamar as pequenas cargas pertencentes a quem nele viaja.

Prezado passageiro, prezada passageira, o Taioba do qual doravante me faço condutor não leva senão gente e coisas pelos trilhos cotidianos de uma cidade imaginada pela qual circula seguindo os de tantas outras de tantos outros. E como já é hora de partir, sigo adiante e despeço-me sem mais delongas com mestre Aldir Blanc. Até a próxima viagem.

"Tome lugar bonde
Não peça que ande
Nem diga por onde seguir
Lembre que só depois
Quando chegar ao fim
Mesmo sem brilho e sem glória haverá sua história, contada assim". ("O bonde" - Aldir Blanc)

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