terça-feira, 8 de setembro de 2015

Obrigado, Jackson!

Passou despercebido aqui no Rio o 31 de agosto último, aniversário do paraibano José Gomes da Silva que, acaso estivesse vivo, completaria 96 anos. Eu sei que tem muito Zé na Paraíba, e por isso serei imediatamente mais específico: falo daquele que gostava tanto de cinema americano que se rebatizou "Jack", passando logo a "Jackson". Sim, o "do Pandeiro"!

Esteja visto, portanto, que antes mesmo de misturar chiclete com banana, Jackson do Pandeiro já misturava forró com Hollywood e tudo mais que lhe desse na veneta. E foi com esse espírito que ele chegou ao Rio de Janeiro, quando corria o ano de 1954 e, todo mundo sabia, mas crer ninguém parecia, os dias do Rio de Janeiro como capital estavam contados. Por outro lado, aos olhos de hoje pode até parecer que ninguém sabia, mas já havia toda uma "bossa" no ar bem antes do surgimento da "bossa nova", gênero que, dali em diante, reivindicaria para si o pioneirismo e o monopólio de todo um jeito novo, um num sei quê temperado com sofisticado e juvenil otimismo musical.

Logo de início, Jackson do Pandeiro causou verdadeiro furor na cidade ao gravar cinco 78 rpm's, o primeiro dos quais com "Forró em Limoeiro" no lado A e "Sebastiana" no lado B. Há quem diga que, por sua habilidade para dividir melodias a torto e a direito, Jackson do Pandeiro abriu caminho para um jovem baiano chamado João Gilberto. Não acato nem desacato a ideia, mas lembro que, para início de conversa, antes seria preciso passar a bola para um tal de Wilson Baptista e um outro tal de Geraldo Pereira, para ficar com apenas dois poucos e bons exemplos.

Mas, na verdade, o que eu queria dizer é que o carioca deve a Jackson do Pandeiro uma das maiores sacaneadas que ele já sofreu, e pelo visto sem perceber. Estou falando de "A Ordem é Samba", lançada em 1966 no álbum não por acaso intitulado O Cabra da Peste. Ali o mestre do ritmo embola os conteúdos dos termos e denuncia de maneira sutil uma das maldições que recaem sobre a cidade: a do samba como prisão, digo, aquela que ganha as raias oficiais e oficiosas até engessar identidades e limitar experiências. Sendo assim, toda vez que um carioca desavisado enche o peito de orgulho para cantar que "No Rio de Janeiro todo mundo vai de samba/ a pedida é sempre samba [...]/Lá vai lá vou eu de samba/a ordem é samba e nada mais", Jackson dever dar uma risadinha esteja lá onde estiver. E por isso mesmo, obrigado, Jackson!

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Ainda há?





A matéria trazia um monte de dados estatísticos e descrições metodológicas, além de um clamor geral pela preservação ambiental dessa cidade que, não obstante chamada Rio, tem feito os seus de privada, inclusive o Carioca, para vocês verem o ponto a que chegamos. Mas o que me deixou mesmo embasbacado foi o título, que anunciava a identificação de uma área de vegetação nativa na Floresta da Tijuca que correspondia a algo como 42 mil Maracanãs.

Termino a leitura - "42 mil Maracanãs de floresta!" - e fico ainda um bom tempo pensando naquela associação - "Maracanã...Floresta, Floresta... Maracanã..." -, até que na curva do pensamento esbarro com o general. Melhor dizendo, lembro da Curva da Amendoeira e do general Ângelo Mendes de Morais.

Explico-me: foi sob a administração de Mendes de Morais (1947-1951), empossado por outro general, o Eurico Gaspar Dutra, numa época em que, por ser Distrito Federal, os prefeitos da cidade eram nomeados diretamente pelo presidente da república, que foi construído o estádio do Maracanã para a fatídica Copa do Mundo de 1950. A realização da obra era polêmica e entre os seus muitos opositores estava o então vereador Carlos Lacerda, de modo que a atuação de Mendes de Morais foi decisiva para que o projeto fosse levado adiante, e com apoio popular ainda por cima.

E a Curva da Amendoeira? Bem, a curva ainda está lá, entre Flamengo e Botafogo, no entroncamento da Avenida Oswaldo Cruz com a Rui Barbosa, cuidada de perto por  Cuauhtémoc, o imperador asteca cujo corpo tombou diante das tropas de Cortez, e cuja estátua por algum milagre não teve o mesmo fim diante das obras do Aterro do Flamengo. Mas se a curva continua, a Amendoeira não. Foi retirada dali a mando do mesmo Mendes de Morais, o entusiasta do Maracanã. A justificativa, se é que havia uma, eu confesso que não sei. E na verdade tive preguiça de pesquisar. Não importa. O fato é que, se na Floresta da Tijuca ainda há floresta, na Curva da Amendoeira já não há mais a imponente amendoeira que lhe deu nome e identidade. E por falar nisso - assim é o Rio de Janeiro -, perguntar não ofende: acaso ainda há Maracanã no Maracanã?

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Notas do subúrbio I



Cascadura

Colado na vidraça do cartório, o solitário bilhete manuscrito atrapalhava a comunicação visual entre público e funcionários.

Papel tosco, bastante amassado, como se tivesse sobrevivido a uma batalha qualquer, trazia em letras garrafais o lasso apelo:

"Favor não batucar no balcão".

Ninguém o assinava. Muito menos agradecia.

segunda-feira, 23 de março de 2015

O segredo que mora na Rua Sara



- Quer saber de uma coisa?!

E a velha, de olhos pequenos, me mostrava o cigarro de filtro amarelo que trazia na mãos de dedos curtos e pele enrugada. Como eu não respondesse, insistiu com sua voz rouca:

- Quer saber de uma coisa, meu filho?!
(Não, não queria, mas senti que seria inútil dizê-lo).

- Tem que ter muito cuidado pra acender cigarro dos outros, viu? O quê?! Tuberculose é foda... Passa até pelo tato! Olha aqui como eu faço...

E me mostrava o maço, que contava apenas dois cigarros virados de cabeça pra baixo, filtros protegidos. Ato contínuo, pedia para que eu ascendesse com o meu o cigarro dela, o que fiz sem demonstrar qualquer interesse pela recomendação.

- Vivi a vida toda aqui. Nasci aqui, praticamente. Conheço todo mundo aqui. (Fez uma pausa meio programada) E digo mais: todo mundo me respeita nessa porra! É...porque eu sou atrevida. Toda Cecília (chamava-se Cecília) é atrevida, hein!

Estava sozinha no bar. Em sua mesa, uma cerveja barata reinava só. Não me olhava propriamente nos olhos enquanto falava.

- Ó...(com um gesto chamou-me para mais perto, como quem fosse contar um segredo). Conhece Laranjeiras? Conhece a Rua Alice? Conhece a Casa Rosa?! Então, trabalhei lá por onze anos! Onze anos trabalhei lá! Tive três filhos: um com dezessete, outro com vinte e outro com quarenta e quatro. Quarenta e quatro! (aparentava muito mais). Conhece alguém assim?! Pois é! E meus filhos sabiam de tudo, que eu nunca escondi de ninguém, não! Descia e subia esse morro todo santo dia, debaixo de sol, debaixo de chuva. Agora tô aqui... Ih... puta que pariu... lá vem minha neta me pedir dinheiro! Primeiro de tudo diz boa noite pro moço!

Apresentou-me a criança. Foi a única vez que interagi com palavras:

- Boa noite.

Chovia. Um carro rompeu o silêncio da rua que parecia dormir.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Rubem Braga estava certo



Fui pego de surpresa quando liguei a TV em pleno domingo, dia do Senhor, e pude ver com meus próprios olhos a profecia se cumprir. Num primeiro momento, confesso que não consegui acreditar no que via. Mas logo lembrei do ignorado presságio do cronista - "Ai de ti, Copacabana!" - e constatei que o fim havia chegado: o fogo não veio, é verdade, mas a antiga Sacopenapã fora, enfim, invadida por um mar furioso e sedento de cada um de seus metros quadrados muito bem especulados.

Enquanto eu, da minha distante e pacata Praça Seca, assistia àquilo tudo e me sentia um peixe fora d'água, em plena Avenida Atlântica cardumes de toda espécie faziam a festa, mormente os "Verde-Amarelo-CBF", recém-saídos das varandas marítimas, muito embora no fundo, no fundo, o ritmo da maré fosse ditado mesmo pelos tubarões. E todos dançavam sem jeito e sem graça, mexendo as barbatanas conforme a música.

Só senti um alívio no peito e percebi que havia me ancorado na ilha certa quando Iemanjá, inquirida ao vivo por um repórter da Globo, disse com muita elegância que não tinha absolutamente nada a ver com aquilo. Que não metessem o nome dela naquela história. E que, muito pelo contrário, se dependesse dela a destruição de Copacabana aconteceria de cima pra baixo, ou melhor, morro abaixo.

De todo modo, foi triste constatar que Rubem Braga estava certo em suas tortas linhas. Pobre Copacabana! Felizmente que o apocalipse durou só um dia. Mas o pesadelo, parece, durará ainda um tanto, prato cheio para os psicanalistas do bairro, um dos quais já me disse que o grande desafio de seus pares vai ser descobrir em que momento seus moradores perderam a autoestima e passaram a imitar os da Avenida Paulista.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Olavo Bilac, o primeiro “ruim de roda” do Rio de Janeiro.*


           
Não havia regras de trânsito estabelecidas nem ruas apropriadas para o trânsito automotivo quando o líder abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) adquiriu, em 1897, o primeiro automóvel da cidade, um Gardner-Serpollet a vapor de 8 Hp. O automóvel era uma novidade, havendo pouquíssimos exemplares no país, e, por menor que fosse o trajeto, ele dependida basicamente do bom senso e da habilidade do próprio condutor, além, é claro, da sorte de que porventura estivesse ao seu lado como passageiro. 

Ainda no mesmo ano, cedendo aos apelos do amigo Olavo Bilac (1865-1918), um das figuras mais destacadas da poesia parnasiana no Brasil, José do Patrocínio resolveu emprestar seu carro para que o poeta pudesse experimentar a sensação de dirigir, mesmo não sendo habilitado. Mal sabiam eles que, por esse acaso, ficariam marcados na história como os protagonistas do primeiro acidente de automóvel de que se tem notícia na cidade. 

Como o modelo seguia padrões ingleses, Bilac, na época com trinta e dois anos, sentou-se a direita, no banco do motorista, e Patrocínio à esquerda, como carona. Depois de alguns quilômetros, o poeta perdeu o controle do veículo e, à velocidade de inacreditáveis 3 Km/h, acabou atingindo em cheio uma árvore na Estrada Velha da Tijuca. Saíram ilesos. Já o carro não teve a mesma sorte: partiu o tronco e caiu no barranco. Perda total. Desolado, mas poupando o amigo, Patrocínio teria praguejado aos céus e colocado a culpa nas péssimas ruas cariocas, verdadeiros obstáculos ao progresso da cidade.




*Texto originalmente publicado como Box no artigo de minha autoria intitulado "Muito antes dos 20 centavos". Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8. nº 96. setembro 2013. p.46

segunda-feira, 2 de março de 2015

Parabéns atrasado



Estrada da Cancela Preta, fronteira entre Bangu e Padre Miguel, Rio de Janeiro. Lá pelas tantas da Avenida Brasil, mais de 45 km de distância de Ipanema, metonímia da cidade-globeleza que, ao contrário da propaganda, não tem tantos 450 anos assim. A vista para a Serra do Mendanha garante o destaque para a natureza em meio aos poucos prédios construídos ao redor.

É de manhã, mas o calor é de fazer ferver água de coco. Na sala, quarenta e cinco adolescentes quase todos pretos ou quase brancos pobres como pretos, como diria Caetano, e eu, que, também preto, arrumo um pretexto para sair dela de dez em dez minutos, assim como eles. Mas a vida é escola, a escola ensina, e é preciso aprender. Recordemos então a lição, que há muito andava esquecida:

- João, meu camarada, quebra um galho pra mim?

E o gari, que já havia contado vantagem mais cedo por ter sido campeão no carnaval (desfilara na Estácio), além de ter arrumado uma grana com um barraquinha na Sapucaí, me responde com um sorriso de esgrimista que golpeia nas pequenas brechas que a vida dá: 

- Quem quebra galho é macaco gordo, professor! E eu sou levinho, levinho...