segunda-feira, 16 de março de 2015

Rubem Braga estava certo



Fui pego de surpresa quando liguei a TV em pleno domingo, dia do Senhor, e pude ver com meus próprios olhos a profecia se cumprir. Num primeiro momento, confesso que não consegui acreditar no que via. Mas logo lembrei do ignorado presságio do cronista - "Ai de ti, Copacabana!" - e constatei que o fim havia chegado: o fogo não veio, é verdade, mas a antiga Sacopenapã fora, enfim, invadida por um mar furioso e sedento de cada um de seus metros quadrados muito bem especulados.

Enquanto eu, da minha distante e pacata Praça Seca, assistia àquilo tudo e me sentia um peixe fora d'água, em plena Avenida Atlântica cardumes de toda espécie faziam a festa, mormente os "Verde-Amarelo-CBF", recém-saídos das varandas marítimas, muito embora no fundo, no fundo, o ritmo da maré fosse ditado mesmo pelos tubarões. E todos dançavam sem jeito e sem graça, mexendo as barbatanas conforme a música.

Só senti um alívio no peito e percebi que havia me ancorado na ilha certa quando Iemanjá, inquirida ao vivo por um repórter da Globo, disse com muita elegância que não tinha absolutamente nada a ver com aquilo. Que não metessem o nome dela naquela história. E que, muito pelo contrário, se dependesse dela a destruição de Copacabana aconteceria de cima pra baixo, ou melhor, morro abaixo.

De todo modo, foi triste constatar que Rubem Braga estava certo em suas tortas linhas. Pobre Copacabana! Felizmente que o apocalipse durou só um dia. Mas o pesadelo, parece, durará ainda um tanto, prato cheio para os psicanalistas do bairro, um dos quais já me disse que o grande desafio de seus pares vai ser descobrir em que momento seus moradores perderam a autoestima e passaram a imitar os da Avenida Paulista.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Olavo Bilac, o primeiro “ruim de roda” do Rio de Janeiro.*


           
Não havia regras de trânsito estabelecidas nem ruas apropriadas para o trânsito automotivo quando o líder abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) adquiriu, em 1897, o primeiro automóvel da cidade, um Gardner-Serpollet a vapor de 8 Hp. O automóvel era uma novidade, havendo pouquíssimos exemplares no país, e, por menor que fosse o trajeto, ele dependida basicamente do bom senso e da habilidade do próprio condutor, além, é claro, da sorte de que porventura estivesse ao seu lado como passageiro. 

Ainda no mesmo ano, cedendo aos apelos do amigo Olavo Bilac (1865-1918), um das figuras mais destacadas da poesia parnasiana no Brasil, José do Patrocínio resolveu emprestar seu carro para que o poeta pudesse experimentar a sensação de dirigir, mesmo não sendo habilitado. Mal sabiam eles que, por esse acaso, ficariam marcados na história como os protagonistas do primeiro acidente de automóvel de que se tem notícia na cidade. 

Como o modelo seguia padrões ingleses, Bilac, na época com trinta e dois anos, sentou-se a direita, no banco do motorista, e Patrocínio à esquerda, como carona. Depois de alguns quilômetros, o poeta perdeu o controle do veículo e, à velocidade de inacreditáveis 3 Km/h, acabou atingindo em cheio uma árvore na Estrada Velha da Tijuca. Saíram ilesos. Já o carro não teve a mesma sorte: partiu o tronco e caiu no barranco. Perda total. Desolado, mas poupando o amigo, Patrocínio teria praguejado aos céus e colocado a culpa nas péssimas ruas cariocas, verdadeiros obstáculos ao progresso da cidade.




*Texto originalmente publicado como Box no artigo de minha autoria intitulado "Muito antes dos 20 centavos". Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8. nº 96. setembro 2013. p.46

segunda-feira, 2 de março de 2015

Parabéns atrasado



Estrada da Cancela Preta, fronteira entre Bangu e Padre Miguel, Rio de Janeiro. Lá pelas tantas da Avenida Brasil, mais de 45 km de distância de Ipanema, metonímia da cidade-globeleza que, ao contrário da propaganda, não tem tantos 450 anos assim. A vista para a Serra do Mendanha garante o destaque para a natureza em meio aos poucos prédios construídos ao redor.

É de manhã, mas o calor é de fazer ferver água de coco. Na sala, quarenta e cinco adolescentes quase todos pretos ou quase brancos pobres como pretos, como diria Caetano, e eu, que, também preto, arrumo um pretexto para sair dela de dez em dez minutos, assim como eles. Mas a vida é escola, a escola ensina, e é preciso aprender. Recordemos então a lição, que há muito andava esquecida:

- João, meu camarada, quebra um galho pra mim?

E o gari, que já havia contado vantagem mais cedo por ter sido campeão no carnaval (desfilara na Estácio), além de ter arrumado uma grana com um barraquinha na Sapucaí, me responde com um sorriso de esgrimista que golpeia nas pequenas brechas que a vida dá: 

- Quem quebra galho é macaco gordo, professor! E eu sou levinho, levinho...

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Como manda a nossa marcha




"Acabou nosso carnaval", lembra a letra da marcha que ainda ecoa, viva, entre buzinas e fumaças nessa segunda-feira ensolarada. Os dias de intenso delírio e otimismo gratuito terminam e começam, e terminam como começam assim, sem fim algum.

"Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê, que nem se sorri, se beija e se abraça e sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor", lamenta a marcha. Sábia marcha que no entanto ainda se ergue da sarjeta para acenar a cada um dos componentes da alma lavada ao relento, os quais, sem perceber, acenam de volta e a cantam sem saber enquanto caminham sozinhos para o trabalho.

Não, não é preciso contar a ninguém a nossa experiência durante esses dias recém-passados...Todos os que se entreolham no dia de hoje, somos cúmplices de nós mesmos. É como se já soubéssemos e compartilhássemos intimamente o mesmo ar de compreensão. Cumprimentemo-nos a nosso modo, então, em segredo, em silêncio, sem culpa por ter apenas sido, e a troco de nada.

O colorido que resiste nas calçadas aos poucos cede lugar ao cinza do asfalto, é verdade, mas ainda está lá. O corpo, há pouco invencível, cede às cinzas e ao cansaço, mas ainda está aí. A vida caminha e se aproxima do seu contrário, mas, enquanto isso, ainda segue, muito embora pareça sem rumo.

O carnaval, caros(as) passageiros(as), só não acaba porque, propriamente dito, nunca começou. Seu tempo não pertence à história, mas à memória. Por isso é que ele vive no folião, ainda que este não o viva o tempo todo.

"E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade", insiste a marcha. Insistamos também e, em meio à máscaras mal encaradas e furiosas, vistamos a fantasia do cotidiano rumo ao que der e vier, "pra ver e brincar outros carnavais, que marchas tão lindas, e o povo cantando seu canto de paz", como manda a nossa marcha.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A cabrocha e a galinha


Até o início do século passado, o Centro do Rio de Janeiro concentrava a maior parte da população carioca, de modo que a distinção pública entre os mais ricos e os mais pobres se dava menos pela ocupação espacial que pela vestimenta e pelo tipo de habitação. Enquanto os primeiros habitavam os casarões e vestiam-se à lá França, os segundos moravam em habitações coletivas ou nas favelas e vestiam-se com o que dava.

Mas, na medida em que a cidade foi crescendo e se expandindo, as desigualdades sociais foram ficando cada vez mais marcadas espacialmente a partir dos pólos Zona Norte e Zona Sul, de modo que já na década de 1940, as diferenças entre esses dois Rios já era nítida.

Os bairros à beira-mar - Copacabana à frente -, beneficiados por uma série de melhoramentos promovidos por Cabrão e sua turma, despontavam como o lugar do novo - e rico - moderno.

A garota de Ipanema, muito antes de Tom e Vinícius, já era um tipo conhecido nos bondes que circulavam por aquelas bandas e que traziam "as mais lindas cabrochas do Rio", como diz a letra da marchinha "Lá vem o Ipanema", de Roberto Roberti e Marina Batista, gravado por Déo para a folia de 1948:

Lá vem o Ipanema, o bonde que nunca viaja sozinho
Lá vem o Ipanema, trazendo as mais lindas cabrochas do Rio
Quando ele entra triunfal no tabuleiro
Meu coração vibra mais forte que um pandeiro
É ele quem resolve meu problema
Trazendo Isabel, trazendo Marina, trazendo Iracema (https://www.youtube.com/watch?v=G_99QOAA2SQ)

Já nos bondes do outro lado da cidade, onde o estilo de vida (sub)urbano mal se distinguia completamente do rural, o ambiente não era assim tão propício ao flerte, pois seus passageiros tinham outras preocupações, como disputar espaço, no banco ou no estribo, com galinhas e outro animais, vide a "Tem galinha no bonde", de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, gravada por Araci de Almeida para o Carnaval de 1942:

Tem galinha no bonde
Tem, tem, que eu vi
Galinha no bonde é abacaxi!
Pára, pára, desce, desce!
Salta, tem que saltar!
Galinha e outros bichos
Não podem viajar
Daqui a pouco o Juca
Traz o galo garnizé
Isso até tá parecendo
A Arca de Noé!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A tristeza da alegria e a alegria da tristeza



Estão errados aqueles que pensam que a folia de Momo é só alegria barata e superficial. Não, senhor(a)! Para o carioca, carnaval é coisa séria e carrega consigo os paradoxos da vida também. O folião legítimo, reparem bem caríssimos(as) passageiros(as), oscila entre aquele(a) que é feliz de tão triste e o que é triste de tão feliz, muito embora a diferença entre um e outro prato da balança não seja lá muito clara. Daí os muitos sambas e marchinhas que trazem como motivo o revanchismo, a resignação ou a espera do (re)encontro com os trilhos certos da própria vida.

Tão (in)esperados quanto fugidios, os (des)encontros amorosos, por exemplo, tiveram lugar garantido carnavais entre as décadas de 1920 e 1960, mesmo que fosse em pé, no estribo no bonde, lugar que, por sempre caber mais um, é comparado ao coração de uma pequena ou de um rapazola sem coração algum na marchinha "Endereço Errado", de Paulo de Carvalho, gravada por Carmem Miranda para o carnaval de 1938:

Amor eu sei que você não tem não
Mas isso não faz mal algum
Seu coraçãozinho é um estribo de bonde
que tem sempre lugar p'rá um
(https://www.youtube.com/watch?v=ia8K7MNoNjU)

Tem também a "Pára o bonde", de Antônio de Almeida, sucesso na voz de Vassourinha, no carnaval de 1942. Aqui, vemos um distraído sujeito que pega o bonde errado e, assim mesmo, vai até o fim da linha para pensar nas próprias mágoas:

Quando eu pego o bonde errado
Vou até o fim da linha
E pra disfarçar as mágoas
Vou tocando a campainha
Outro dia eu distraí
Passeando com meu bem
Peguei o Estrada de Ferro
Pensando que fosse trem

Já o belíssimo samba "E o 56 não veio...", de Wilson Batista, gravado em 1944, narra a tristeza do camarada que espera uma hora (!) a amada no ponto do bonde apelidado justamente - vejam vocês! - de Alegria, linha de número 56 que partia da praça XV em direção a Rua Licínio Cardoso (São Francisco Xavier), passando pela Rua da Alegria (Caju). Dado o traçado do bonde, é de se imaginar que a pequena, se era humilde, de boba não tinha nada. Na certa, preferiu os mistérios e os flertes da cidade ao convencional namorinho no portão:

Eu ontem esperei ás 7 em ponto
Ainda dei uma hora de desconto
Os ponteiros do relógio pareciam me dizer
"Vai embora meu amigo ela não vai aparecer"
Será que ela não veio porque se zangou?
Ou o bonde Alegria descarrilou?
Houve qualquer coisa de anormal
Ela sempre foi pra mim tão pontual
Fui ao chefe da Light, perguntei ao inspetor
"O que houve com o 56? Esse bonde sempre trouxe o meu amor".




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Não pago o bonde!

Se ao longo do ano os bondes  eram os principais parceiros do carioca, durante o carnaval então, nem se fala! Sua função era dupla: por um lado, eram eles que levavam a moçada para a folia que, na verdade, já começava mesmo em seu interior, infernizando a vida do condutor e do motorneiro; por outro, e não menos importante, serviam de mote para as próprias marchinhas e sambas que animavam a festa de Momo.

Em ambos os casos, a figura do condutor era de longe a mais esculhambada, e por um motivo muito simples: o carnaval, parênteses da vida cotidiana, era o momento propício para tirar onda com a cara daquele que durante o ano inteiro cobrava o dinheiro da passagem, cujo preço é discutível não é de hoje.

Humilde funcionário da Light, empresa que detinha o monopólio dos bondes elétricos, o "conduta", pobre coitado, era visto com desconfiança e muitas vezes foi acusado de cobrar mais do que devia, como nesse samba de A. Neto, Aldacir Louro e Rubens Fausto, intitulado O Conduta do Taioba, que animou o carnaval de 1955:

O conduta deste taioba,
Diz que é honesto quando cobra,
Mas toda vez que faz tim... tim...
Logo vai dizendo, dois pra Light e um pra mim.
Ele anda pendurado o ano inteiro.
É muito vivo e não tem nada de otário,
Fazendo tim... tim...
Fazendo tim... tim...
Este conduta acaba milionário.

Também brincalhona, porém muito mais desafiadora, era a marcha Não pago o bonde, de J. Cascata e Leonel Azevedo, sucesso no carnaval de 1938 na voz de Odete Amaral. Nela, o esperto passageiro aproveita a ocasião da festa para transformar malandramente o condutor em "camarada", e a empresa responsável pelo transporte, no verdadeiro e acertado alvo do protesto.

Fica a dica para o carnaval desse ano!

Não pago o bonde, iaiá
Não pago o bonde, ioiô
Não pago o bonde
Que eu conheço o condutor
Quando estou na brincadeira
Não pago o bonde
Nem que seja "por favor"

Não pago o bonde
Porque não posso pagar
O meu é muito pouco
E não chega pra gastar
Moro na rua das casas
Daquele lado de lá
Tem uma porta e uma janela
Mande a Light me cobrar!

Segue o link para quem quiser ouvir essa belezura: https://www.youtube.com/watch?v=GtBYW-2jfRA