segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Marcha Crônica de um Carnaval Carioca Qualquer


-Vou beijar-te agora, não me leve a mal. Hoje é Carnaval!
- O galo tem saudade da galinha carijó...
- Nós vamos brincar separados?
- É o teu castigo! Brigou comigo sem ter porquê.
- Bandeira branca, amor... Não posso mais...
- Caramba, carambola... Sou do samba, não me amola!
- Mamãe... eu quero!
- Sen-sa-ci-o-nal...
- Não vai dar?! Não vai dar não?! Você vai ver uma grande confusão!
- Pierrô cacete! Vai tomar sorvete com o Arlequim!
- Foi Deus quem te fez formosa... porém esse mundo te tornou presunçosa. Presunçosa!
- Tem nego bebo aí, tem nego bebo aí...
- Eu bebo sem compromisso. Com meu dinheiro. Ninguém tem nada com isso!
- Olha o bafo da onça que...
- Se você fosse sincera...
- A pipa do vovô não sobe mais...
- Taí! Eu fiz tudo pra você gostar de mim...
- Ô abre alas, que eu quero passar...Ô abre alas, que eu quero passar...

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental


As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Principio, como o faz Alberto Mussa em seu último romance, com uma frase que, a rigor, deveria ser a conclusão desta crônica. Mas não faz mal. O sujeito das quintas, que não se deve confundir com um sujeito de quinta, tem dessas coisas. Enquanto todo mundo vive a expectativa do dia seguinte, ele não sabe, não pode e nem tampouco quer esperar o derradeiro parágrafo.

Logo eu, que nasci num sábado de carnaval, fui adorar a quinta-feira. Ando desconfiado de que toda essa inclinação possa ter a ver com o orixá que me guia, o que me foi revelado numa curimba há alguns anos lá pelas bandas de Campo Grande. Sabem como é, né: vida de ateu não praticante não é moleza, não.

Não que eu desconsidere os demais dias da semana. Não é isso. Mas eu sempre achei que a quinta-feira, especialmente a quinta, era o meu dia. Ou pelo menos desde os tempos de faculdade, nem tão longínquos assim. Podia até tomar umas num dia ou outro, escolhidos aleatoriamente conforme o calor, a vontade ou as duas coisas juntas. Não vou negar. Mas quinta-feira era diferente. Era dia do meu ritual: Bar da Frente, Cintra e biscoito Torcida, que eu não fujo das derrotas do passado, não senhores! Copo era - e continua sendo - americano, por favor! Os amigos chegavam depois, bem depois, mas chegavam. Como que por telepatia.

Mas vamos às razões, afinal de contas todo mundo tem as suas. Nas quintas, há um quê de compostura no ar. Não diante da vida, mas da morte. Há mais dignidade, portanto, numa quinta-feira. Reparem só os bares, onde nas quintas-feiras os seres flertam abertamente com o acaso, desafiam-no na purrinha e, ainda por cima, dão uma bela de uma borrada na assepsia produtiva da semana, que fica em aberto, maculada. Os da quinta, em resumo, não suportam redenções enlatadas e debocham dos que assim procedem. Por essas e outras, e sobretudo nos tempos que correm, há que se ter muito respeito pelo sujeito que chega de ressaca no trabalho numa sexta-feira. Vejam: matar o batente não adiantaria de nada, ainda que o corpo suplique. É preciso exibir com orgulho a ressaca para o povo das sextas.

Já os bares do dia seguinte se enchem de gente excessivamente frívola e monótona. Esses mesmos, que entornam o caldo na sexta, e esperam ansiosamente por isso, para poderem recolher - enquanto recolhem-se - calmamente toda a sujeira no sábado e preservar, assim, a ordem das coisas. Tudo está no seu lugar, graças a deus!, ainda que a cabeça esteja zureta.

Não, não. Obrigado, mas não. As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Anotem aí: estejam todos convidados pro meu dia. Costumo celebrá-lo aqui mesmo, no BF, microcosmo do centro do Rio, meu canto mais recente e pra onde voltei depois de uns bordejos na Zona Oeste. Mas a quinta-feira continua a mesma. E minha. É só chegar.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Isabel que não foi princesa

Cinquenta anos depois que Isabel, a princesa, assinou a Lei Áurea, nascia, na cidade de Niterói, Isabel Souza Lima. É, na verdade, o que consta em seu registro de nascimento. Porque essa Isabel de que trato aqui costumava comemorar seu aniversário em outra data, dizendo a todos ter nascido a 28 de novembro, mas de que ano ninguém sabe ao certo. Muito menos ela.

Isabel fazia parte da extensa prole do casal Malvino Alves de Souza e Adelia Costa Souza. Ele pedreiro, ela lavadeira. Todos, pais, filhos e irmãos, negros. Como a imensa maioria das meninas pobres e negras de seu tempo, Isabel teve uma infância dura. Ainda criança, precisou ajudar sua mãe com a entrega das roupas. E foi assim que acabou passando à guarda de outra família, que a ela se afeiçoou e tomou para si a responsabilidade de criá-la.

Sua educação foi primária e, na adolescência, foi trabalhar na fábrica de fósforos Fiat Lux, no bairro operário do Vila Lage, em São Gonçalo. Mas seu conhecimento vinha mesmo era do tete-a-tete com a vida, que a ensinou em algum momento, provavelmente muito cedo, que para sobreviver era preciso imaginar-se num carnaval, com toda a sua euforia melancólica de alegorias, máscaras, confetes, serpentina e lança-perfume.

E Isabel brincou. E nessa brincadeira conheceu Betinho, negro garboso que na verdade se chamava Beethoven Silva Lima, num baile da Sociedade Carnavalesca Mimoso Manacá. Casaram-se em 1959, quando ela contava, portanto, com 18 ou 19 anos de idade. Logo vieram os filhos, ou melhor, as filhas. Duas. Ligia e Leila.

Isabel foi forte, mas não foi rude. Serviu à família e segurou as pontas quando Betinho, metido a malandro, aprontava das suas. E não foram poucas. As filhas, criou-as como pôde e a partir de sua própria experiência. Escola, uniforme, cabelo alisado na marra. Por força das circunstâncias, acabou por criar também os três netos, Rafael, Larissa e Gabriel. Todos devidamente rezados com o cú virado pra lua e levados com jujubas numa mão e um chinelo ameaçador na outra, só pra garantir.

Minha avó morreu quando eu tinha 14 anos. Nasceu livre mas não pôde se libertar de todo. E talvez soubesse disso. Mas que brincou, brincou. Gostava de dançar. Arrumava-se toda. Tomava lá a sua cervejinha e fumava escondida no quintal. E ria. E gargalhava. Não se sabe se foi feliz. É que, no carnaval da vida, borram-se os contornos que delimitam o íntimo e o superficial. E vó Isabel, que não foi princesa, adorava carnaval.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Carioquice

Há bastante tempo recai sobre o Rio um quebranto que nem mesmo as incontáveis entidades que por aqui batem ponto têm conseguido desfazer. Sua origem - como é da natureza dos quebrantos - é mítica e, como não manjo nada de mitologia, deixo-a para os iniciados de plantão. Só sei que, por algum vacilo junto aos deuses - sempre o vacilo! - o carioca parece irremediavelmente condenado a ter um problema medonho com sua própria identidade.

Trocando em miúdos é o seguinte: como a gente foi capital durante muito tempo, não temos nenhuma tradição de nos pensar regionalmente. Quer-se dizer: ou bem o carioca acaba girando em torno de si mesmo ou inventa - e acredita na própria invenção - que é o espelho do país. Na verdade, as duas coisas não apenas andam juntas, como se entrelaçam e dão origem a chamada carioquice, que voltou à moda por conta dos 450. Recentemente surgiram até especialistas no assunto - vejam só vocês - nos eventos os mais pomposos possíveis. "Fulano de Tal, profundo conhecedor da carioquice".

Previnam-se, caríssimos(as) passageiros(as), pois a carioquice é uma enfermidade espiritual, tanto mais séria na medida em que encontra ecos oficiais e cega o carioca quanto a sua própria experiência na cidade até esvaziá-la por completo, tornando-o um mero fantasma de si mesmo. Não por acaso o nosso prefeitóide, que de vez em quando circula pelas bandas da Portela e do Renascença - de chapeuzinho de malandro na cabeça e tudo! -, dá as caras no Cachambeer, toma banho no chuveirão de Madureira, dirige táxi e tudo o mais, parece ter feito da carioquice a sua meta síntese. "Viva a carioquice", diz o slogan da prefeitura, e nessa brincadeira as múltiplas potencialidades da cidade vão sendo aprisionadas na desgastada, porém ainda viva e perigosa, imagem de cidade maravilhosa, agora a partir do "Porto Maravilha".[1] 

Agarremo-nos aos nossos protetores. São Manuel Antônio de Almeida, São Lima Barreto, São João do Rio, São Marques Rebelo, vigiai e protegei! São Noel Rosa, São Ismael Silva, São Pixinguinha, Donga João da Baiana e Clementina, que embora de Jesus invoca forças muito mais pertinentes ao caso em questão. Convoquemos também Aldir Blanc! Não se esqueçam do Melodia, pra prender bem nosso cansaço. E seguremos as pontas, porque, vocês sabem, quando tem muita visita o senhorio capricha nas aparências. E ano que vem o bicho pega.




[1] Aliás, vocês já repararam que se, de um lado, a repaginada Praça Mauá nos chama para a Baía de Guanabara, por outro ela meio que volta a dar sentido à perspectiva da Avenida Rio Branco?!

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Lava Jato



Avenida Brasil, altura de Padre Miguel. 42,5º. Paro o carro no primeiro posto que vejo.[1] Não porque precisava abastecê-lo, mas porque precisava lavá-lo. O serviço era feito por um monte de moleques, magrinhos que só. Uns mais velhos, uns mais novos. Todos pretos. Alegres, trocavam ideia entre si enquanto lavavam os carros e se esquivavam do calor como podiam. Não reclamavam de nada. Observo a cena a meia distância, abrigado na única sombra que acho, junto a um muro e um banco de concreto.

- Aê, Crioulo, pega o pano aê!
- Negão, dá um valor aqui pra mim!

Chamavam-se, eles mesmos, de crioulo e negão e que tais. Pensei em perguntar o porquê. Dizer na boa que aquilo, de alguma maneira, os desvaloriza e, mais do que isso, desvaloriza a todos nós e tudo o mais. Mas meu impulso professoral - não pela primeira vez - é natimorto. Definitivamente não tenho nenhuma vocação pra convencer ninguém de qualquer coisa que seja. Por ninguém também quero dizer eu mesmo, esteja visto.

- Tá novo, meu chefe!

Pego a carteira e, antes que pudesse abrí-la, o mais desenvolto deles me diz com ar de quem se garante:

- Calma, calma, é melhor não se precipitar. Dá uma olhada aí e vê primeiro se tá bem feito.

Dou uma risadinha de canto de boca. Confiro o resultado displicentemente, pego a chave do carro e deixo dez pratas a mais de gorjeta. Era sexta-feira. E os moleques merecem.





[1] Eu sei que é um troço antiquado, mas ainda não consegui me livrar do carro.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Vidigal


Miguel Nunes Vidigal nasceu lá pela segunda metade dos setecentos. Dizem os colegas historiadores que era original de Angra dos Reis, que fazia parte da então Capitania do Rio de Janeiro, e que, vindo parar na Corte não me lembro como, galgou posições na hierarquia militar local até chegar ao posto de major da recém-criada Divisão Militar da Guarda Real de Polícia (1809). Pelos prestimosos serviços prestados, foi agraciado pelos monges beneditinos - vejam só vocês - com um generoso terreno ao pé do Morro Dois Irmãos, que corresponde hoje, a dedução é deveras fácil, ao Morro do Vidigal.

O verdadeiro major Vidigal só não é mais interessante que o seu duplo literário, aquele que, nas Memórias de um Sargento de Milícias, perscruta a cidade de cabo a rabo e diuturnamente, conhecedor que era de suas ruas, ruelas e travessas. Todas elas. Muito mais que um chefe de polícia, Major Vidigal é como um espectro, onipresente e ameaçador. Acompanhado de seus fieis granadeiros, que por sua vez carregavam consigo as suas chibatas - apenas por prevenção evidentemente -, nada lhe escapa. Nada lhe pode escapar. Ninguém o ludibria, a não ser que isso faça parte de um divertido joguete, criado, claro, por ele mesmo para o seu bel e sádico prazer.
            
Vidigal era inimigo confesso e particular das patuscadas. Não gostava de festas. Se fosse de negros, diga-se de passagem a maioria da população na aurora do 19, tanto pior. Candomblé, batuque, violão e capoeira? Nem pensar! Vidigal mandava prender, mandava bater, mandava ajoelhar. Gosto particularmente do capítulo em que Manuel de Almeida dedica a apresentação da personagem. Num determinado momento, Vidigal adentra uma festa recheadas de súcias - que eram, digamos assim, o nome dado pelos bons cristãos ao grupo sócio-cultural que hoje corresponde mais ou menos à rapaziada que pega o 474 para ir à praia na Zona Sul. Adentra, como eu ia dizendo, e manda que continuem a dançar. Até que os participantes cansam. E Vidigal manda continuar. E eles cansam. E imploram para parar. E Vidigal desce-lhes, então, satisfeito da vida, a lenha, de modo que eles passam a dançar, mas conforme outra música.

Diz Calvino, não o suíço, mas o Ítalo, que toda cidade tem seus deuses próprios, espécie de ente mítico que a vinca e lhe imprime uma marca intemporal. Quer-se dizer, ainda que a cidade atravesse os séculos e que os arranjos primeiros de suas pedras se torne irreconhecível ao longo do tempo, alguns de seus elementos fundamentais a rodeiam e, vez por outra, vêm à tona, como que a relembrá-la de suas origens. Já eu, que não sou suíço nem ítalo, digo, sem desdenhar dos deuses, que a cidade também tem lá os seus demônios fundamentais. E que o Rio de Janeiro em particular, ninguém o poderá duvidar, possui uma boa penca deles. Vidigal é um. Não terá sido o primeiro. E nem o último. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

474


Todos os dias, 24 horas por dia, ele parte da Rua Álvaro Seixas, próximo ao Largo do Jacaré, que fica na fronteira entre o bairro do mesmo nome e o Engenho Novo, Zona Norte da cidade. Daí, quebra à esquerda para a Baronesa do Engenho Novo, mais uma vez à esquerda para a Maximiniano de Figueiredo, contorna, pelo outro lado, o Largo de onde saiu, ganha a Lino Teixeira, torna à direita para a Carlos Costa até alcançar o bairro do Riachuelo e seguir o seu trajeto em direção a Zona Sul da cidade.

Até chegar a Rua Afrânio de Melo Franco, no Leblon, atravessa treze bairros, num percurso de vinte e nove quilômetros - arredondando para baixo -, feitos em aproximadamente uma hora, uma hora e meia, creio eu, a depender do trânsito. Percebam que assumo aqui o ponto de vista de um único sentido, e por uma razão muito simples: considero que, do contrário, seu itinerário ele mesmo não teria sentido algum, pois carrega consigo apenas aqueles(as) que seguem, nos dias de semana, rumo ao seu trabalho mal remunerado, e, nos fins de semana, rumo à praia. Na volta, não leva outros(as) a outros lugares, apenas os(as) mesmos(as) de volta para casa, de modo que trocam muito pouco com a cidade os seus passageiros(as), como se dela não fizessem parte.

Treze bairros, vinte e nove quilômetros, uma hora e meia, e ninguém parece se incomodar, a não ser nos seus três bairros, cinco quilômetros e meio e quinze minutos para chegar ao destino final. A partir dali, aí sim, ele incomoda. Sobretudo no verão. E como no Rio é sempre verão, incomoda sempre. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que não incomodaria mesmo, e muito, caso não se associassem as cenas de furto aos moleques pretos despejados por ele na orla de Copacabana, Ipanema e Leblon. Isso porque são moleques e pretos.

É possível que, a partir do mês que vem, ele não passe da Candelária. É o que estuda fazer a prefeitura, sem perceber que o 474 é a cidade, e que nele se resumem suas potencialidades presentes e futuras. Impedi-lo de ir até a Zona Sul nada mais é, passageiros e passageiras, que assinar o nosso termo de fracasso e desistir da cidade. Um dia, teremos vergonha por não termos reagido a isso. Esse será mais um de nossos já muito numerosos traumas coletivos.

*****
Em tempo: acabo de  me lembrar que o prefeito andou projetando uma pista de esqui para o Parque Madureira, sob a justificativa de fazer o povo [sic], ao invés de Aspen, ir para o subúrbio, o que faria de nós uma cidade integrada, em sua própria perspectiva, é claro.