quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Vidigal


Miguel Nunes Vidigal nasceu lá pela segunda metade dos setecentos. Dizem os colegas historiadores que era original de Angra dos Reis, que fazia parte da então Capitania do Rio de Janeiro, e que, vindo parar na Corte não me lembro como, galgou posições na hierarquia militar local até chegar ao posto de major da recém-criada Divisão Militar da Guarda Real de Polícia (1809). Pelos prestimosos serviços prestados, foi agraciado pelos monges beneditinos - vejam só vocês - com um generoso terreno ao pé do Morro Dois Irmãos, que corresponde hoje, a dedução é deveras fácil, ao Morro do Vidigal.

O verdadeiro major Vidigal só não é mais interessante que o seu duplo literário, aquele que, nas Memórias de um Sargento de Milícias, perscruta a cidade de cabo a rabo e diuturnamente, conhecedor que era de suas ruas, ruelas e travessas. Todas elas. Muito mais que um chefe de polícia, Major Vidigal é como um espectro, onipresente e ameaçador. Acompanhado de seus fieis granadeiros, que por sua vez carregavam consigo as suas chibatas - apenas por prevenção evidentemente -, nada lhe escapa. Nada lhe pode escapar. Ninguém o ludibria, a não ser que isso faça parte de um divertido joguete, criado, claro, por ele mesmo para o seu bel e sádico prazer.
            
Vidigal era inimigo confesso e particular das patuscadas. Não gostava de festas. Se fosse de negros, diga-se de passagem a maioria da população na aurora do 19, tanto pior. Candomblé, batuque, violão e capoeira? Nem pensar! Vidigal mandava prender, mandava bater, mandava ajoelhar. Gosto particularmente do capítulo em que Manuel de Almeida dedica a apresentação da personagem. Num determinado momento, Vidigal adentra uma festa recheadas de súcias - que eram, digamos assim, o nome dado pelos bons cristãos ao grupo sócio-cultural que hoje corresponde mais ou menos à rapaziada que pega o 474 para ir à praia na Zona Sul. Adentra, como eu ia dizendo, e manda que continuem a dançar. Até que os participantes cansam. E Vidigal manda continuar. E eles cansam. E imploram para parar. E Vidigal desce-lhes, então, satisfeito da vida, a lenha, de modo que eles passam a dançar, mas conforme outra música.

Diz Calvino, não o suíço, mas o Ítalo, que toda cidade tem seus deuses próprios, espécie de ente mítico que a vinca e lhe imprime uma marca intemporal. Quer-se dizer, ainda que a cidade atravesse os séculos e que os arranjos primeiros de suas pedras se torne irreconhecível ao longo do tempo, alguns de seus elementos fundamentais a rodeiam e, vez por outra, vêm à tona, como que a relembrá-la de suas origens. Já eu, que não sou suíço nem ítalo, digo, sem desdenhar dos deuses, que a cidade também tem lá os seus demônios fundamentais. E que o Rio de Janeiro em particular, ninguém o poderá duvidar, possui uma boa penca deles. Vidigal é um. Não terá sido o primeiro. E nem o último. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

474


Todos os dias, 24 horas por dia, ele parte da Rua Álvaro Seixas, próximo ao Largo do Jacaré, que fica na fronteira entre o bairro do mesmo nome e o Engenho Novo, Zona Norte da cidade. Daí, quebra à esquerda para a Baronesa do Engenho Novo, mais uma vez à esquerda para a Maximiniano de Figueiredo, contorna, pelo outro lado, o Largo de onde saiu, ganha a Lino Teixeira, torna à direita para a Carlos Costa até alcançar o bairro do Riachuelo e seguir o seu trajeto em direção a Zona Sul da cidade.

Até chegar a Rua Afrânio de Melo Franco, no Leblon, atravessa treze bairros, num percurso de vinte e nove quilômetros - arredondando para baixo -, feitos em aproximadamente uma hora, uma hora e meia, creio eu, a depender do trânsito. Percebam que assumo aqui o ponto de vista de um único sentido, e por uma razão muito simples: considero que, do contrário, seu itinerário ele mesmo não teria sentido algum, pois carrega consigo apenas aqueles(as) que seguem, nos dias de semana, rumo ao seu trabalho mal remunerado, e, nos fins de semana, rumo à praia. Na volta, não leva outros(as) a outros lugares, apenas os(as) mesmos(as) de volta para casa, de modo que trocam muito pouco com a cidade os seus passageiros(as), como se dela não fizessem parte.

Treze bairros, vinte e nove quilômetros, uma hora e meia, e ninguém parece se incomodar, a não ser nos seus três bairros, cinco quilômetros e meio e quinze minutos para chegar ao destino final. A partir dali, aí sim, ele incomoda. Sobretudo no verão. E como no Rio é sempre verão, incomoda sempre. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que não incomodaria mesmo, e muito, caso não se associassem as cenas de furto aos moleques pretos despejados por ele na orla de Copacabana, Ipanema e Leblon. Isso porque são moleques e pretos.

É possível que, a partir do mês que vem, ele não passe da Candelária. É o que estuda fazer a prefeitura, sem perceber que o 474 é a cidade, e que nele se resumem suas potencialidades presentes e futuras. Impedi-lo de ir até a Zona Sul nada mais é, passageiros e passageiras, que assinar o nosso termo de fracasso e desistir da cidade. Um dia, teremos vergonha por não termos reagido a isso. Esse será mais um de nossos já muito numerosos traumas coletivos.

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Em tempo: acabo de  me lembrar que o prefeito andou projetando uma pista de esqui para o Parque Madureira, sob a justificativa de fazer o povo [sic], ao invés de Aspen, ir para o subúrbio, o que faria de nós uma cidade integrada, em sua própria perspectiva, é claro.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Pequena Biografia Sentimental de Ismael Silva

Quem nasce sem eira nem beira precisa estar atento para, no exato momento em que a brecha for dada - e sempre haverá ao menos uma brecha -, inventar-se e inventar um mundo para si mesmo num único golpe. Arte difícil essa, na qual Ismael Silva foi insuperável. Nascido preto e pobre, filho mais novo de uma prole órfã de pai, saiu de Jurujuba ainda criança para inventar o Estácio e, a partir de dele, uma cidade-mundo, abrigo dos seus.

Propriamente dito, jogar o joguinho - com a licença, seu João Antônio! - não sabia, não. Mas ainda assim jogou. Jogou porque precisava jogar. E jogou com símbolos, dando pernada em seus sentidos até que eles se tornassem ambíguos, móveis, e virassem a seu favor. Eis aí a sua malandragem, aprendida na rua, certamente, mas aplicada de maneira muito particular.

Ainda criança, invadiu e surrupiou a escola, confundindo o inimigo. Em pouco tempo, tomou-lhe o nome e fez-se ele mesmo professor. Mais do que isso: reivindicou o a autoridade do gesto, como quem soubesse do seu significado para além do superficial das criações. Quem inventou a escola de samba? "Fui eu!", dizia Ismael, e "deixa falar quem quiser, tem que respeitar", emendava logo em seguida.

Mas Ismael inventou mais que isso. Tornou-se maestro de uma orquestra composta de cuíca, surdo e tamborim, levando para a música toda uma nova experiência urbana cotidiana. Sabia, mais do que ninguém, que era preciso injetar cadência e marcação para que sua gente pudesse olhar para frente, de cabeça erguida, fingindo ingenuidade enquanto tomava a cidade de assalto. E assim, foi no Estácio que Rio de Janeiro se viu no espelho, sem maquiagem, pela primeira vez.

Não esteve à venda, mas vendeu muitos de seus samba. Vendeu não, foi profissional, que o jogo é jogado sempre. Com Francisco Alves, o Chico Viola, sua face visível, branca, aceitável, fez muita gente metida a besta pensar que era malandra. Fez o batuque subverter a civilização, ou antes fez a sua civilização adentrar o espaço de uma outra civilização que se pretendia a única possível. Com Noel Rosa, fez-se compositor respeitável. Nas rodas de intelectuais, fez-se moderno.

Sem eles, é verdade, a vida era difícil. Meteu-se em confusão. Talvez tivesse até matado se fosse preciso. Pegou cadeia. Deu a volta, não por cima, mas pela lateral. Morreu sozinho, numa pensão da Gomes Freire, aos setenta e três anos. Não guardou nada, que malandro que é malandro não tem tempo pra essas coisas, mas nos deixou de lambuja a arte da invenção, tão necessária nos dias que se vão.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Obrigado, Jackson!

Passou despercebido aqui no Rio o 31 de agosto último, aniversário do paraibano José Gomes da Silva que, acaso estivesse vivo, completaria 96 anos. Eu sei que tem muito Zé na Paraíba, e por isso serei imediatamente mais específico: falo daquele que gostava tanto de cinema americano que se rebatizou "Jack", passando logo a "Jackson". Sim, o "do Pandeiro"!

Esteja visto, portanto, que antes mesmo de misturar chiclete com banana, Jackson do Pandeiro já misturava forró com Hollywood e tudo mais que lhe desse na veneta. E foi com esse espírito que ele chegou ao Rio de Janeiro, quando corria o ano de 1954 e, todo mundo sabia, mas crer ninguém parecia, os dias do Rio de Janeiro como capital estavam contados. Por outro lado, aos olhos de hoje pode até parecer que ninguém sabia, mas já havia toda uma "bossa" no ar bem antes do surgimento da "bossa nova", gênero que, dali em diante, reivindicaria para si o pioneirismo e o monopólio de todo um jeito novo, um num sei quê temperado com sofisticado e juvenil otimismo musical.

Logo de início, Jackson do Pandeiro causou verdadeiro furor na cidade ao gravar cinco 78 rpm's, o primeiro dos quais com "Forró em Limoeiro" no lado A e "Sebastiana" no lado B. Há quem diga que, por sua habilidade para dividir melodias a torto e a direito, Jackson do Pandeiro abriu caminho para um jovem baiano chamado João Gilberto. Não acato nem desacato a ideia, mas lembro que, para início de conversa, antes seria preciso passar a bola para um tal de Wilson Baptista e um outro tal de Geraldo Pereira, para ficar com apenas dois poucos e bons exemplos.

Mas, na verdade, o que eu queria dizer é que o carioca deve a Jackson do Pandeiro uma das maiores sacaneadas que ele já sofreu, e pelo visto sem perceber. Estou falando de "A Ordem é Samba", lançada em 1966 no álbum não por acaso intitulado O Cabra da Peste. Ali o mestre do ritmo embola os conteúdos dos termos e denuncia de maneira sutil uma das maldições que recaem sobre a cidade: a do samba como prisão, digo, aquela que ganha as raias oficiais e oficiosas até engessar identidades e limitar experiências. Sendo assim, toda vez que um carioca desavisado enche o peito de orgulho para cantar que "No Rio de Janeiro todo mundo vai de samba/ a pedida é sempre samba [...]/Lá vai lá vou eu de samba/a ordem é samba e nada mais", Jackson dever dar uma risadinha esteja lá onde estiver. E por isso mesmo, obrigado, Jackson!

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Ainda há?





A matéria trazia um monte de dados estatísticos e descrições metodológicas, além de um clamor geral pela preservação ambiental dessa cidade que, não obstante chamada Rio, tem feito os seus de privada, inclusive o Carioca, para vocês verem o ponto a que chegamos. Mas o que me deixou mesmo embasbacado foi o título, que anunciava a identificação de uma área de vegetação nativa na Floresta da Tijuca que correspondia a algo como 42 mil Maracanãs.

Termino a leitura - "42 mil Maracanãs de floresta!" - e fico ainda um bom tempo pensando naquela associação - "Maracanã...Floresta, Floresta... Maracanã..." -, até que na curva do pensamento esbarro com o general. Melhor dizendo, lembro da Curva da Amendoeira e do general Ângelo Mendes de Morais.

Explico-me: foi sob a administração de Mendes de Morais (1947-1951), empossado por outro general, o Eurico Gaspar Dutra, numa época em que, por ser Distrito Federal, os prefeitos da cidade eram nomeados diretamente pelo presidente da república, que foi construído o estádio do Maracanã para a fatídica Copa do Mundo de 1950. A realização da obra era polêmica e entre os seus muitos opositores estava o então vereador Carlos Lacerda, de modo que a atuação de Mendes de Morais foi decisiva para que o projeto fosse levado adiante, e com apoio popular ainda por cima.

E a Curva da Amendoeira? Bem, a curva ainda está lá, entre Flamengo e Botafogo, no entroncamento da Avenida Oswaldo Cruz com a Rui Barbosa, cuidada de perto por  Cuauhtémoc, o imperador asteca cujo corpo tombou diante das tropas de Cortez, e cuja estátua por algum milagre não teve o mesmo fim diante das obras do Aterro do Flamengo. Mas se a curva continua, a Amendoeira não. Foi retirada dali a mando do mesmo Mendes de Morais, o entusiasta do Maracanã. A justificativa, se é que havia uma, eu confesso que não sei. E na verdade tive preguiça de pesquisar. Não importa. O fato é que, se na Floresta da Tijuca ainda há floresta, na Curva da Amendoeira já não há mais a imponente amendoeira que lhe deu nome e identidade. E por falar nisso - assim é o Rio de Janeiro -, perguntar não ofende: acaso ainda há Maracanã no Maracanã?

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Notas do subúrbio I



Cascadura

Colado na vidraça do cartório, o solitário bilhete manuscrito atrapalhava a comunicação visual entre público e funcionários.

Papel tosco, bastante amassado, como se tivesse sobrevivido a uma batalha qualquer, trazia em letras garrafais o lasso apelo:

"Favor não batucar no balcão".

Ninguém o assinava. Muito menos agradecia.

segunda-feira, 23 de março de 2015

O segredo que mora na Rua Sara



- Quer saber de uma coisa?!

E a velha, de olhos pequenos, me mostrava o cigarro de filtro amarelo que trazia na mãos de dedos curtos e pele enrugada. Como eu não respondesse, insistiu com sua voz rouca:

- Quer saber de uma coisa, meu filho?!
(Não, não queria, mas senti que seria inútil dizê-lo).

- Tem que ter muito cuidado pra acender cigarro dos outros, viu? O quê?! Tuberculose é foda... Passa até pelo tato! Olha aqui como eu faço...

E me mostrava o maço, que contava apenas dois cigarros virados de cabeça pra baixo, filtros protegidos. Ato contínuo, pedia para que eu ascendesse com o meu o cigarro dela, o que fiz sem demonstrar qualquer interesse pela recomendação.

- Vivi a vida toda aqui. Nasci aqui, praticamente. Conheço todo mundo aqui. (Fez uma pausa meio programada) E digo mais: todo mundo me respeita nessa porra! É...porque eu sou atrevida. Toda Cecília (chamava-se Cecília) é atrevida, hein!

Estava sozinha no bar. Em sua mesa, uma cerveja barata reinava só. Não me olhava propriamente nos olhos enquanto falava.

- Ó...(com um gesto chamou-me para mais perto, como quem fosse contar um segredo). Conhece Laranjeiras? Conhece a Rua Alice? Conhece a Casa Rosa?! Então, trabalhei lá por onze anos! Onze anos trabalhei lá! Tive três filhos: um com dezessete, outro com vinte e outro com quarenta e quatro. Quarenta e quatro! (aparentava muito mais). Conhece alguém assim?! Pois é! E meus filhos sabiam de tudo, que eu nunca escondi de ninguém, não! Descia e subia esse morro todo santo dia, debaixo de sol, debaixo de chuva. Agora tô aqui... Ih... puta que pariu... lá vem minha neta me pedir dinheiro! Primeiro de tudo diz boa noite pro moço!

Apresentou-me a criança. Foi a única vez que interagi com palavras:

- Boa noite.

Chovia. Um carro rompeu o silêncio da rua que parecia dormir.