segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Santo e a Angel

[Subiu no Taioba, mal deu bom dia ao condutor, sentou-se ao lado dela e sem demora começou a falar.]

- Obrigado por ter vindo. Sei que, apesar de suas seguidas investidas, nunca trocamos qualquer palavra antes. Não me leve a mal. Outro dia, com calma, podemos colocar tudo isso em pratos limpos, se você assim desejar. De todo modo, espero não estar sendo invasivo, mas é que de onde venho não temos o costume de questionar o porquê das coisas, elas simplesmente irrompem e pronto.

Bem, vou direto ao ponto. O motivo da minha aparição, assim, de supetão, você deve imaginar qual é, e me desculpe a franqueza, mas fiquei muito injuriado com seu rompante de madame da semana passada. Que foi aquilo, Hild?! Ora, então eu trabalho duro o ano todo pra você me vir com uma dessas?! De novo esse papo de segregar para resolver o "caos" da Zona Sul, meu Deus do céu?! Agora fica todo mundo aí, te achincalhando pelo tal de Facebook - que, aliás, vou te contar também hein...

Sabe, Hild, minha breve experiência na Terra não foi lá das melhores. E é só por isso que eu não te rogo um "bem feito"! Tenho cá minhas convicções, você deve saber... Pois é, e por não abrir mão delas, principalmente por acreditar que os povos podem deixar suas diferenças de lado e conviverem numa boa, fui condenado à morte por flechadas. Como não morri de imediato, me deram tanta bordoada, Hild, mas tanta, que não resisti. Jogaram meu corpo no rio...

Por isso, quando batizaram essa cidade com meu santo nome, fiquei... fiquei puto, Hild, a verdade é essa - que Deus não me ouça! Cheguei a dar entrada em processo celeste pra desfazer a encrenca. Lembro de protestar aos berros: "Que história é essa dos portugueses associarem logo a minha imagem à vitória na guerra contra os franceses e os tupinambá? O que eu tenho a ver com isso, meu Deus?!" De nada adiantou.

Mas aí, tempo vai, tempo vem... acabei me afeiçoando por essa gente. Sabe como é santo, né. E de mais a mais, descobri, afinal, que o que me liga a essa cidade é justamente esse estigma da violência que eu tenho que desfazer todo santo dia, que nem Sísifo. Você nem imagina o dobrado que eu tenho que cortar aqui no Rio, Hild... Tanto, que, para dar conta do recado, recorro a ajuda de São Jorge, que, malandro, acaba levando a fama só por gostar mais de rua do que eu. Tudo bem, não me importo. Faço o que está ao meu alcance, e até prefiro atuar nos bastidores...

Só não me venham com esse papo de que santo de casa não faz milagres! Claro que não posso evitar muita coisa, né. Também, não sou Deus. E mesmo que fosse, tem esse negócio todo aí de livre arbítrio, e coisa e tal. Caso contrário você acha que o velho Cabrão estaria aí no poder por tanto tempo?! Nem ele nem o Padilha, minha filha! Infelizmente isso aí não é comigo, senão... Mas, olha, não é pra me gabar, não, Hild, já desfiz muros por aí que muitos julgavam inabaláveis. Um dia você vai me agradecer, Hild, por essa praia lotada de gente da Zona Norte, da Baixada, das favelas... você vai ver. Tem muito ricaço aí que me agradece até hoje pelo samba ter sobrevivido, Hild... Ora, se não é essa gente a te cutucar a vida mansa, você nunca sairia dessa redoma, minha filha. E tem mais...

[Emocionada, Hildegard não se conteve. As lágrimas caíram. Sem conseguir dizer nada, interrompeu São Sebastião, pediu-lhe a benção e desceu numa esquina do Leblon. Dizem que foi vista tempo depois tomando sol, em meio a multidão, de maiô importado. Cantarolava, um tanto envergonhada, alguma coisa do Cartola, parece.]

2 comentários:

  1. Este estilo de crônicas é muito legal. A gente vai se envolvendo como se estivéssemos participando do papo.
    Parabéns.

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